Amadurecimento

Ártemis versus as Princesas Disney:

 

A deusa Ártemis é aquela responsável pelos ritos de passagem da infância para a vida adulta. O objetivo deste texto é explicar esta deusa, usando, para isso, as Princesas Disney como exemplo e metáfora. Serão analisadas: Ariel, Aurora, Bela, Branca de Neve e Cinderela; todas adolescentes no limite do casamento (rito de passagem). No entanto, todas essas meninas querem fazer a passagem, ao contrário da deusa eternamente virgem.

Ártemis é a deusa das fronteiras; limites. Trata-se de uma deusa cheia de ambigüidades. Ela é responsável pela passagem para a idade adulta. Também é quem cuida dos animais e dos bosques, em oposição com o homem civilizado. Cuida e sacrifica, protege e caça; tanto homens como feras. Quer se manter virgem, fora do jugo do casamento; assim também o fazem seus protegidos, que a maioria acaba sendo sacrificado (direta ou indiretamente) por causa da deusa enquanto ainda são adolescentes.  Segundo Jean-Pierre Vernant: “…, trata-se dos confins, das zonas limítrofes, das fronteiras onde o Outro se manifesta no contato que regularmente se mantém com ele,…”.

Uma das funções de Ártemis é a de kuróthropa, ou seja, aquela que nutre os jovens. Ela cuida e nutre os animais e os humanos, ajuda-os a crescer até que possam se cuidar sozinhos. Vemos esse traço muito claramente na Cinderela que cuida e veste os ratos e passarinhos, além de ser a responsável por alimentar todos os animais.

A deusa é a senhora dos bosques e das feras, o que marca as fronteiras entre o animal e o homem, e entre a civilização e o mundo selvagem. Na mitologia sobre Ártemis os homens e as feras aparecem sempre misturados. Vemos os homens sendo sacrificados em lugar dos animais e os animais em lugar dos homens. Exemplos são: Ácteon sendo morto como corsa; a cabra sendo morta no lugar da filha de Embaros, entre outros. Citando Kérenyi: “As meninas vestidas para tomar parte no culto de Ártemis, e representativas do grupo da mesma faixa etária de que falamos, chamavam-se arktoi, “fêmeas de urso”; o serviço delas, a celebração do seu estágio de vida, chamava-se arktoia, “estado de ursa”, cuja explicação era a seguinte: “Porque elas agem como fêmeas de urso”.”. Ariel é metade peixe (animal) metade homem e só consegue cumprir seu rito de passagem quando se vê livre de sua metade animal. Branca de Neve é substituída por um animal na hora que o caçador apresenta o coração dela à rainha.

Os templos consagrados à Ártemis eram sempre fora da cidade, em locais próximos à natureza. A deusa não gostava da pólis, preferindo bosques e montanhas onde pudesse caçar. Ao mesmo tempo, era ela quem preparava os jovens para a civilização. Segundo Vernant:

“Quanto aos filhos dos homens, ela os conduz até o limiar da adolescência, que eles deverão – deixando em suas mãos a vida juvenil – ultrapassar com sua concordância e ajuda, para chegar, através dos rituais de iniciação que ela preside, à plena sociabilidade – a mocinha, investindo-se na condição de esposa e mão, o efebo, na de cidadão-soldado. ”

Essas diferenças entre o selvagem e o civilizado estão muito presentes nos filmes da Disney. Cinderela encontra ajuda divina (para conhecer o príncipe) em um local mais próximo à natureza; Aurora é escondida, enquanto criança, por divindades em uma floresta e vai ser apresentada à civilização no mesmo dia em que conhecerá seu noivo; a pequena sereia só consegue chegar na cidade quando “morre” a sereia e fica a mulher e Branca de Neve se refugia em uma floresta para esperar o príncipe. A Bela e a Fera marcam um contraste: ela representa a civilização e ele a selvageria; no entanto, ela vem de uma sociedade marca pela caça (como vemos com Gastão e seus troféus) e ele é selvagem mas já foi um nobre príncipe. O castelo da Fera está na fronteira entre a natureza e a cidade.

Para o homem adulto, grego, a natureza aparecia como perigosa: lugar onde estavam os animais ferozes e guardado pela deusa que não gostava de homens adultos. “Ao perseguir os animais para matá-los, o caçador penetra o terreno da selvageria.” (Vernant).  Walt Disney representa, em alguns de seus filmes, a natureza hostil e assustadora, exemplos: Branca de Neve em sua fuga pela floresta; Bela e seu pai quando precisam chegar ou sair do castelo da Fera e o caçador Gastão que vê imediatamente a Fera como uma ameaça àquela sociedade civilizada.

Outro aspecto de Ártemis é sua natureza sanguinária que exige sacrifícios como pagamento ao que ela considera como ofensa. Muitas vezes são sacrifícios humanos, como Ifigênia, por exemplo. Marca de outra ambigüidade da deusa que sacrifica aqueles que ela protege. Aurora está jurada de morte e a ameaça é de que isso vai acontecer antes que ela vire adulta e, no caso da Branca de Neve, a rainha manda que o caçador a sacrifique em nome da vaidade da rainha.

Os ritos de passagem de Ártemis envolvem o casamento e a sexualidade. A deusa é virgem, quer se manter virgem, e apresenta uma sexualidade mais viril, representada pela caça, pela guerra e por uma imagem corporal mais musculosa, assim como um corpo masculino.  Os afilhados da deusa também rejeitam a sexualidade, exemplo Hipólito. Nos mitos em que isso é quebrado, o sexo aparece representado num animal: Zeus como urso no mito de Calistos, Ácteon virando urso por ter visto a deusa nua e Hipólito que é morto como um animal após ter sido amaldiçoado pelo pai que pensava que ele estava apaixonado pela madrasta. A Fera representa esse masculino como animal. As Princesas Disney, em contraposição, são a marca da feminilidade: ainda não fizeram o rito de passagem, mas estão sonhando com o amor e o casamento; cumprem as tarefas de donas de casa, as imagens estão sempre relacionadas com flores e pequenos animais, além das formas definidas e as curvas bem demarcadas.

Uma última imagem a ser feita é a correlação entre a noiva e a morte. Correlação esta, bem representada pela tragédia de Ifigênia em Áulis. O casamento é o rito de passagem da infância para a vida adulta. A noiva representa a morte da menina e o nascimento da mulher. Há toda uma forma de vida típica da infância que deverá desaparecer com o casamento, vemos isso em todas as Princesas que abandonam suas casas, os pequenos animais, o ambiente natural em que viviam após o casamento (Bela após beijar a Fera transforma o lado animal dele e todos no castelo, mostrando um novo mundo que surge). Porém, podemos fazer um paralelo mais específico com a Aurora e a Branca de Neve que precisam morrer para cumprir seus ritos.

Podemos concluir desse texto que as imagens que se tem representando o fim da adolescência continuam as mesmas desde a Grécia até os tempos de hoje. As histórias dos mitos que serviam para educar as crianças foram substituídas, hoje em dia, pelos filmes de Walt Disney, entretanto, todos os arquétipos continuam presentes, mesmo que por vezes mais escondidos. Vemos ainda a necessidade de uma representação imagética e metafórica das mudanças e contradições de uma fase da vida.

Os desenhos animados da Disney vêm funcionando, na educação das crianças, como uma mitologia contemporânea.

Nova Série: William Shakespeare

Referências Mitológicas em Shakespeare

Absirto

Mário Amora Ramos

Há muito a aprender com as tragédias, comédias, dramas históricos e sonetos de William Shakespeare (1564-1616), também autor de alguns poemas.

As referências mitológicas relacionadas a seguir, acompanhadas das principais localizações na obra original, são um bom exemplo do tesouro que é sua obra.

Este texto, e os demais que se seguirão, são uma modesta homenagem ao quarto centenário de sua morte, ocorrida no dia 23 de abril de 2016, no dia de São Jorge, padroeiro da Inglaterra. Sua proteção é aqui invocada, para o sucesso deste trabalho, com esta exortação de Eduardo, conde de March, mais tarde rei Eduardo IV:

“Deus e São Jorge estejam conosco!” (God and Saint George for us!)

[Terceira Parte do Rei Henrique VI, Ato II, Cena I].

Absirto (Absyrtus) aparece uma única vez em toda a obra de Shakespeare.

Jasão, da Tessália, liderou os argonautas (tripulantes do navio Argo) na busca do velocino de ouro, uma pele recoberta da lã de um carneiro fabuloso, que estava na Cólquida, protegido por dragões. Medeia era filha do rei Eetes, da Cólquida.

Como é frequente em muitos mitos, o rei Eetes prometeu-lhe o velocino, desde que o herói cumprisse uma tarefa. Jasão teria de lavrar um campo com dois touros monstruosos e indomados, de cascos de bronze e que expeliam fogo pelas narinas, que lhe tinham sido oferecidos por Hefesto, deus dos ferreiros (Vulcano, na mitologia romana). Em seguida, teria de semear no campo lavrado os dentes de um dragão que fora morto por Cadmo em tempos passados. Segundo alguns relatos, Hera, como protetora de Jasão, pediu a Afrodite que convencesse Eros a fazer Medeia se apaixonar por Jasão. Assim, ela, conhecendo as segundas intenções do seu pai, passa a ajudar o herói. Em troca, ele se casaria com ela, e a levaria consigo no caminho de volta a Iolcos. Medeia oferece, então, ao estrangeiro, um unguento que deveria usar no corpo e no seu escudo, tornando-o invulnerável ao fogo e ao ferro durante um dia – o suficiente para enfrentar os touros e lavrar o campo.

Medeia adverte-o também de que dos dentes de dragão nascerá uma seara de soldados que se virarão contra ele e que o tentarão matar. Contudo, Medeia, dá-lhe uma simples solução para o problema: basta lançar uma pedra, de longe, para o meio desse exército erguido da terra. Os soldados entrariam em discussão sobre quem atirara a pedra e matariam uns aos outros. Com tais conselhos, Jasão executou as tarefas com facilidade e voltou a reclamar o velo de ouro a Eetes.

O rei da Cólquida, furioso, resiste e tenta frustrar de novo os intentos do argonauta, tentando incendiar a nau Argo, além de pretender matar a sua tripulação. É novamente Medeia quem ajuda Jasão a escapar, ao adormecer com narcóticos o dragão que guardava o velo de ouro e avisando-o dos planos do pai. Conseguem, assim, fugir da Cólquida, com o tesouro almejado.

É então que o lado cruel de Medeia se revela pela primeira vez. Quando partem, leva consigo Absirto, seu irmão, sabendo que não tardaria que seu pai lhes fosse no encalço. Para o atrasar, mata o irmão e despedaça-o, dispersando os restos mortais pelo caminho, sabendo que o pai tentaria recolher cada pedaço para lhe dar a sepultura devida.

Há uma referência a este episódio nesta fala do jovem Clifford, partidário de Henrique VI, em versos no original:

“Se eu encontrar um infante da casa de York, cortar-lhe-ei em pedaços, como a cruel Medeia fez com o jovem Absirto.”

(Meet I an infant of the house of York,

Into as many gobbets will I cut it

As wild Medea young Absyrtus did)

[Segunda Parte do Rei Henrique VI, Ato V, Cena II].

Criador e Criatura

O mito de Prometeu conta a história de um titã que ousou roubar o fogo divino e foi castigado por isso. No entanto, toda a humanidade se beneficiou de todo o engenho que o uso do fogo podia trazer. Não fosse a figura de Epimeteu (irmão de Prometeu) abrir a caixa de Pandora e libertar todos os males no mundo, ainda estaríamos vivenciando a Idade do Ouro.

Passemos ao “Prometeu Moderno” – como nos indica o subtítulo do romance Frankenstein. Temos a figura do cientista Victor Frankenstein que se arvora a ser como Deus e cria uma nova vida a partir do nada. Quem é o Prometeu?

Frankenstein dota a sua criatura (mesmo sem saber) de todo o fogo e engenho. A criatura aprende a falar, escrever, usar ferramentas e pensar como os humanos. Tudo iria bem não fosse o passo epimeteico do cientista que recusa a própria criatura e transforma a natureza benevolente desta na fúria vingativa de um verdadeiro monstro.

Porém, Frankenstein tem uma nova chance de “fechar a caixa de Pandora” se gerar uma nova criatura. O monstro promete parar sua vingança sanguinária contra a humanidade se o cientista lhe der uma companheira. Sem saber as consequências que a segunda criatura, sua Pandora, traria, Frankenstein nega novamente ao seu ser a única coisa que este deseja: aceitação.

Victor Frankenstein, antes do fim, se percebe como a verdadeira marionete a mercê do destino e seu Criador vingativo nem precisa mostrar as caras para que tudo se cumpra a Seu desígnio.

Adeus da Série “Referências Mitológicas em Dom Quixote”

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

Sinon, Sísifo, Tântalo, Teseu, Tício, Ulisses, Vênus, Vulcano e Zeus

Mário Amora Ramos

Sinon era filho de Sísifo, ao qual é dedicado o próximo verbete. Sinon deixou-se aprisionar pelos troianos para ajudar os compatriotas gregos a infiltrarem o Cavalo de Troia. Cervantes refere-se às “traições de Sinon” (las traiciones de Sinón) [I, XLVII], embora ele tenha sido mais propriamente um agente secreto dentro das linhas inimigas.

O comentarista Martín de Riquer esclarece que “segundo as lendas clássicas [Sinon] era grego, mas no tempo de Cervantes divulgou-se a crença de que era um troiano a serviço do inimigo (como em Troya abrasada, de Calderón e Zabeleta), o que justifica que lhe atribuam traições”.

Sísifo, na mitologia grega, era rei de Corinto, condenado pelos deuses ao suplício de rolar uma pedra pesada para o alto de uma montanha, a qual rolava de volta para baixo, num trabalho improdutivo e interminável. A Canção de Crisóstomo se refere a Sísifo e seu “peso terrível” (peso terrible) [I, XIV].

Tântalo, na mitologia grega, era rei da Frígia, condenado pelos deuses ao suplício da sede, tendo água até o pescoço, e da fome, por não alcançar os frutos da árvore que lhe dava sombra. A Canção de Crisóstomo se refere a “Tântalo com sua sede” (Tántalo con sua sed) [I, XIV].

Teseu, rei de Atenas, matou o Minotauro no labirinto de Creta, ajudado por um fio que lhe foi dado por Ariadne. Dom Quixote adverte Sancho contra os encantadores, que podem envolvê-lo “num labirinto de imaginações, que não conseguirias sair dele, nem que tivesses a corda de Teseu” (en un laberinto de imaginaciones,que no aciertes a salir dél, aunque tuvieses la soga de Teseo). [I, XLVIII].

Tício era um gigante, condenado pelos deuses ao suplício de ter suas entranhas roídas por um abutre. A Canção de Crisóstomo se refere a Tício e “seu abutre” (su buitre) [I, XIV].

Ulisses, também chamado Odisseu, foi o herói da Odisseia, de Homero. Dom Quixote se refere a ele como “prudente e sofrido” (prudente y sufrido) [I, XXV]. V. também Calipso, Cila e Caríbdnis, Circe, Penélope e Polifemo.

Vênus, na mitologia romana, é a deusa do amor. Corresponde a Afrodite, na mitologia grega. Ela aprarece na Canção de Altisidora “nas suas selvas” (en sus selvas) [II, LXII] e nesta referência a Vulcano, “o ciumento deus dos ferreiros que prendeu Vênus e Marte numa rede” (el celoso dios de los herreros enredó a Venus y a Marte) [II, LXVIII].

Vulcano, na mitologia romana, é o deus dos ferreiros, equivalente a Hefesto, na mitologia grega. Ele aparece indiretamente como “deus das ferrarias” (dios de las herrerías) [I, XXI] e como “o ciumento deus dos ferreiros”, no verbete acima.

Zeus, o deus supremo dos gregos, não é mencionado diretamente em Dom Quixote, mas aparece nos verbetes Dânais, Faetonte e Plêiades. Há, no entanto, um verbete referente a Júpiter, seu equivalente na mitologia romana.

Encerram-se aqui as referências mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, numa modesta homenagem ao quarto centenário da morte do autor, em 1516.

Mas é Carnaval

Um texto meu falando “academiquês” mas que vem a calhar com a época do ano. Boa folia dionisíaca para todos e que voltemos ao apolíneo na Quarta-Feira de Cinzas.


A Democracia Trágica de Atenas:

 

“O negócio é a peça – que eu usarei

Pra explodir a consciência do rei.”

(William Shakespeare – Hamlet)

 

 

            A tragédia grega surge em um contexto muito específico da História da Grécia Antiga. Ela aparece no momento de consolidação da democracia ateniense; momento de quebra com a tradição mítica no qual as explicações humanas assumem um destaque em relação às explicações divinas. Em busca de diminuir a importância da aristocracia, uma verdade revelada a poucos, um herói semelhante aos deuses, um governante escolhido pelo deus, não têm mais espaço no ambiente do voto popular, dos soldados hoplitas e do interesse da cidade acima dos interesses individuais.

A tragédia nasce do mito. Não se tem precisão (nem consenso) quanto ao nascimento exato da tragédia; porém é certo que ela surge de ritos e está associada ao deus Dioniso. Dioniso é o deus da alteridade, do êxtase, da quebra dos limites. O lugar dele na pólis é o da capacidade do homem ser outro, sair de sua vida no métron, na razão, e conhecer a áte (cegueira da razão). Através da loucura dionisíaca, o cidadão podia extravasar todos os sentimentos de “excesso” e continuar a viver o cotidiano dentro da medida. Esta tarefa também aparece na tragédia quando ocorre a kátharsis do público e esses sentimentos são sublimados.

 

O elemento básico da religião dionisíaca é a transformação. O homem, arrebatado pelo deus, transportado para o seu reino por meio do êxtase, é diferente do que é no mundo cotidiano. Mas a transformação é também aquilo de onde, e somente daí, pode surgir a arte dramática, que é algo distinto de uma mera imitação desenvolvida através de um instinto lúdico, e é também algo distinto de uma representação mágico-religiosa de demônios, pois a arte dramática é uma replasmação do vivo. (LESKY, apud FERNANDES, sem ano, 5).

 

 

Neste novo cenário democrático da pólis, a tragédia marca o conflito entre os valores do herói mítico e do novo herói trágico. O herói mítico é aquele que está acima dos outros mortais, os limites deles vão mais longe do que os dos outros. Ele vem de alguma linhagem real: é descendente de algum deus; disso provém o seu poder. Os deuses estão sempre por trás das ações desses heróis, garantindo sempre que sua glória seja maior que a de outros heróis e que eles sejam lembrados pelas gerações futuras. Qualquer hýbris (excesso) desses heróis é justificada como tendo sido a vontade de alguma divindade.

 

As lendas dos heróis, com efeito, ligam-se a linhagens reais, a génē nobres que, no plano de valores, de práticas sociais, de formas de religiosidade, de comportamentos humanos, representam para a cidade justamente aquilo que ela teve que condenar e rejeitar, contra o que teve que lutar para estabelecer-se mas também aquilo a partir do que se constituiu e com que permanece profundamente solidária. (VERNANT 1988, 14).

 

 

Toda a mitologia dos heróis ainda é muito presente na pólis, porém, foi contra esses valores que confirmavam a aristocracia que a democracia teve que combater para se estabelecer.

 

Criaturas

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

Quimera, Sagitário, Sátiros, Sileno e Silvanos

Mário Amora Ramos

Quimera foi um monstro da mitologia grega, morto por Belerofonte, com a ajuda de Pégaso, o cavalo alado. A quimera lançava fogo pelas narinas e tinha cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente. Ela aparece como sinônimo de criatura fantástica na Canção de Crisóstomo, nestes versos:

“E o porteiro infernal dos três rostos,

Com outras mil quimeras e mil monstros”

(Y el portero infernal de los tres rostros,

con otras mil quimeras y mil monstros,) [I, XIV]

O “porteiro infernal dos três rostos” é Cérbero, um cão de três cabeças, guardião do inferno, para o qual há um verbete específico.

A quimera aparece diversas vezes no texto de Dom Quixote, como neste exemplo, no sentido de sonho, fantasia ou acontecimento fantástico:

“Ali Dom Quijote estava atento, sem proferir palavra, considerando estes tão estranhos acontecimentos, atribuindo-os todos a quimeras da cavalaria andante.”

(Allí don Quijote estaba atento, sin hablar palabra, considerando estos tan estraños sucesos, atribuyéndolos todos a quimeras de la andante caballería.) [I, XLII]

Sagitário é um centauro (meio homem, meio cavalo) que dispara seu arco. A palavra deriva do latim sagitta (flecha). Sancho Pança, em conversa com seu amigo Ricote, contou que governara a ilha Baratária “como um sagitário” (como un sagitario) [II, LIV], talvez se referindo à rapidez com que um sagitário dispara suas flechas.

Sátiros, na mitologia grega, eram assistentes de Dioniso, o deus do vinho (Baco, para os romanos). Os sátiros tinham orelhas pontudas, chifres curtos, cabeça e corpo de homem e pernas de cabra. Foram citados por Dom Quixote em sua penitência na Serra Morena:

“Ó vós outras, napeias e dríades, que usais habitar no mais cerrado dos montes, assim os ligeiros e lascivos sátiros de quem sois amadas, posto que em vão, não perturbem jamais o vosso doce sossego; ajudai-me a deplorar a minha desventura, ou pelo menos não vos canseis de ma ouvir!”

(¡Oh vosotras, napeas y dríadas, que tenéis por costumbre de habitar en las espesuras de los montes, así los ligeros y lascivos sátiros, de quien sois, aunque en vano, amadas, no perturben jamás vuestro dulce sosiego, que me ayudéis a lamentar mi desventura, o, a lo menos, no os canséis de oílla!) [I, XXV].

Sileno era o líder dos sátiros e tutor de Dioniso. Dom Quixote se refere a ele como “aquele bom velho Sileno, aio e pedagogo do alegre deus do riso” (aquel buen viejo Sileno, ayo y pedagogo del alegre dios de la risa) [I, XV].

Silvanos, na mitologia romana, eram as divindades masculinas do bosque (em latim, silva). Eles correspondem aos sátiros, da mitologia grega. Foram citados por Dom Quixote em sua penitência na Serra Morena [I, XXVI].

Dos Olhos de Ressaca ao Sorriso de Monalisa

Como hoje eu acordei meio benjaminiana resolvi falar da aura das obras de arte. Em termos gerais, Walter Benjamin fala que as obras de arte têm um que a mais que não é só a obra em si e que faz delas obras-primas. Existem várias teorias em Filosofia da Arte, mas o que eu quero focar hoje é nessa parte que vai além; também na teoria de que a história das obras de arte acaba se tornando parte delas e modificam o olhar que temos sobre elas.

O melhor exemplo disso é a Monalisa. Quando se entra no Louvre para ver a obra-prima de Da Vinci; o que se vê, na verdade, são todas as lendas e as histórias que envolvem esse quadro. Você fica procurando confirmar se ela segue mesmo alguém pela sala com o olhar; você tenta decifrar o que há por trás do famoso enigma do sorriso da Gioconda. Se não fosse essa aura envolvendo o quadro, o que você veria seria a porcaria de um quadro pequeno, atrás de um vidro e cheio de japoneses tentando tirar foto dele entre você e o quadro (ok, se não fosse pela aura talvez não tivessem tantos japoneses). Meu querido tio Mário brinca e diz que todos prestam atenção na Monalisa e ninguém vê o gigantesco e maravilhoso quadro que está na parede oposta a ela. (Confesso que lembro vagamente do quadro; eu estava no cliché de tentar ver a famosa dama (?) atrás da prisão de vidro. Afinal, como ir ao Louvre e não tentar ver a Monalisa?).

Outro exemplo maravilhoso desta pós-vida das obras de arte é a questão se Capitu traiu ou não Bentinho. Confessem, os poucos que realmente leram “Dom Casmurro” com atenção, vocês ainda teriam lido com o mesmo interesse se não fossem os milhões de estudiosos que já se debruçaram sobre a obra para tentar tirar argumentos para cada um dos lados? Machado de Assis (embora genial) realmente criou uma trama tão interessante assim para atravessar os anos? A história do romance entre os dois vizinhos e a traição (dada como certa pelo narrador) não tem em si nada de especial. O que traz o brilho de “Dom Casmurro” é o fato da mulher dos olhos de ressaca não poder dar a sua opinião. O grande ponto do livro é a narração unilateral que trás argumentos de apenas um lado. Seria Capitu um demônio tão grande quanto o pintado por Bentinho se pudéssemos ver seus argumentos? É como estar preso em uma briga de casal em que só um dos lados pode falar. A grande “brincadeira” de Machado é deixar pistas de pontos cegos de Bentinho para que possamos procurar argumentos para a não-traição de Capitu. (Ou não. Ou isso é mais uma das discussões de críticos que costumam irritar os autores. “Uma pedra no meio do caminho” pode apenas ser um pedaço de rocha que se encontra por onde o eu-lírico passa).

O que torna uma obra um clássico é o fato de ainda gerar discussões por muitos anos vindouros. Gerar mais perguntas que respostas; um microcosmos refletindo as grandes questões sem resposta da humanidade.  Passemos então à Mitologia; você sabe por que cada mito tem, geralmente, mais de uma versão? Tudo bem, a oralidade é o fator número um. Mas também há o fato de os conquistadores se apropriarem de mitos das regiões conquistadas. Uma deusa mãe tem características próprias de cada região (agrícola, silvícola, urbana, etc.). Porém, imagine-se na antiguidade e chegando a uma nova cidade. Eles dizem que a deusa deles tem um nome diferente, mas você sabe que aquela é a mesma deusa que sempre te protegeu.

Citando Gil: “sons diferentes, sim, para sonhos iguais”.

Amores Perdidos

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

Penélope, Perseu, Píramo e Tisbe, Plêiades e Polifemo

Mário Amora Ramos

Penélope era a fiel esposa de Ulisses, também chamado Odisseu, o herói da Odisseia, de Homero. Ela aguardou seu retorno por vinte anos, tecendo uma teia interminável, que tecia pela manhã e desfazia à noite. Na Novela do Curioso Impertinente, Camila é comparada a uma “nova e perseguida Penélope” (nueva y perseguida Penélope) [I, XXXIV].

Perseu matou a Medusa, a única mortal das três irmãs chamadas Górgonas. Medusa gabou-se de sua beleza para a deusa Atena, que ficou com inveja e transformou-a num ser horrendo, com cobras vivas no lugar de cabelos. Eram tão feias que quem as olhava se transformava em pedra. Perseu usou um escudo polido como um espelho para olhá-la indiretamente.

Dom Quixote se refere equivocadamente a Perseu nesta instrução a Sancho Panza, em sua aventura na Serra Morena:

“Mas o melhor será, para não te perderes, que cortes alguns ramos dos muitos que há por aqui e os vás pondo de trecho em trecho, até saíres no raso, os quais servirão de marcos e sinais para que me aches na volta, como uma imitação do fio do labirinto de Perseu”

(Cuanto más, que lo más acertado será, para que no me yerres y te pierdas, que cortes algunas retamas de las muchas que por aquí hay y las vayas poniendo de trecho a trecho, hasta salir a lo raso, las cuales te servirán de mojones y señales para que me halles cuando vuelvas, a imitación del hilo del laberinto de Perseo) [I, XXV].

Como bem observa Martín de Riquer em seus comentários, “foi Teseu e não Perseu quem saiu do labirinto de Creta” (Fue Teseo, y no Perseo, quien acertó a salir del laberinto de Creta).

Teseu foi mencionado no verbete referente a Ariadne, que se apaixonou por ele e lhe deu uma espada e um novelo de linha, para guiá-lo de volta do labirinto do Minotauro.

Píramo e Tisbe namoravam às escondidas, já que suas famílias eram rivais. Um dia, Píramo encontrou uma veste ensanguentada de Tisbe e achou que ela tinha sido morta por uma leoa. Ele se matou e Tisbe, encontrando seu corpo, se suicidou. Dom Lourenço recitou um soneto sobre o infeliz casal [II, XLIII]. Um estudante comparou o namoro de Basílio e Quitéria aos “já olvidados amores de Píramo e Tisbe” (los ya olvidados amores de Píramo y Tisbe) [II, XIX].

Píramo e Tisbe inspiraram Shakespeare na tragédia de Romeu e Julieta, os amantes de Verona.

Plêiades são as sete filhas de Atlas e da ninfa Plêione, transformadas por Zeus primeiramente em cabras e depois em estrelas (constelação das Plêiades). Após o voo em Clavilenho, Sancho contou que, no céu, “me diverti com as cabrinhas” (me entretuve con las cabrillas) [II, XLI].

O substantivo “plêiade” hoje simboliza uma reunião de sete pessoas ilustres ou, por extensão, um grupo de literatos.

Polifemo era um dos Ciclopes, três gigantes que habitavam a Sicília, segundo a Odisséia, de Homero. Tinham um só olho circular no meio da testa, conforme mostra a etimologia grega da palavra: kyklos, círculo, e ops, olho. Polifemo aprisionou Ulisses e seus companheiros numa caverna. Para escapar, Ulisses cegou Polifemo. O gigante é mencionado num dos trotes dos duques [II, LXVIII].


Olha eu dando palpite no texto dos outros (desculpem a intromissão). Eu só queria lembrar que Píramo e Tisbe aparecem na comédia Sonho de Uma Noite de Verão, de Shakespeare.

Também queria deixar um verso sobre Penélope: Como chorar em cima do cadáver inexistente de um amor?

Então Bebamos uma Xícara de Chá

Livros são como viagens: alguns a gente lê pelo destino final e outros para ir vendo as paisagens pelo caminho. Com livros policiais, ou de ação, o que queremos é chegar ao fim e saber quem matou. São livros que podem ser “estragados” se alguém revela antes a grande surpresa do final. E há livros como “A Elegância do Ouriço” de Muriel Barbery.

A trama se passa em um edifício em Paris no qual a zeladora e uma adolescente desenvolvem uma relação especial através do olhar que uma tem da outra. Quase não tem ação; digo quase porque vai num crescendo. Com isso, começa muito devagar e só ganha ritmo quase no final. Mas é sensível e bonito e traz consigo belas paisagens pelo caminho. Analisemos um trecho:

 

“Assim como Kazuko Okakura, autor do Livro do Chá, que se consternava com a revolta das tribos mongóis no século XIII, não porque ela causara morte e desolação mas porque destruíra, entre os frutos da cultura Song, o mais precioso deles, a arte do chá, eu sei que não se trata de uma bebida menor. Quando se torna ritual, o chá constitui o cerne da aptidão para ver a grandeza das pequenas coisas. Onde se encontra a beleza? Nas grandes coisas que, como as outras, estão condenadas a morrer, ou nas pequenas que, sem nada pretender, sabem incrustar no instante uma preciosa pedrinha de infinito?

O ritual do chá, essa recondução exata dos mesmos gestos e da mesma degustação, esse acesso a sensações simples, autênticas e requintadas, essa licença dada a cada um, a baixo custo, de se tornar um aristocrata do gosto, porque o chá é a bebida tanto dos ricos como dos pobres, o ritual do chá, portanto, tem essa virtude extraordinária de introduzir no absurdo de nossas vidas uma brecha de harmonia serena. Sim, o universo conspira para a vacuidade, as almas perdidas choram a beleza, a insignificância nos cerca. Então, bebamos uma xícara de chá. Faz-se o silêncio, ouve-se o vento que sopra lá fora, as folhas de outono sussurram e voam, o gato dorme sob uma luz quente. E, em cada gole, se sublima o tempo.” Muriel Barbery, A Elegância do Ouriço

 

Se, como Nietzsche dizia, nossa salvação for mesmo pela estética; acho que Muriel Barberry iria concordar. Também é um pouco por isso que eu tenho um blog sobre Mitologia. Sobreviveríamos sem histórias que nos explicassem o mundo, mas a que custo? Dizem que os primeiros sinais de uma “mitologia” foi encontrarem pólen de flores em túmulos pré-históricos. O homem das cavernas já sentia necessidade de marcar momentos importantes como a morte de um ente querido. Desde os primórdios, sentimos necessidade de enfeitar o mundo a nossa volta. O por quê? Que digam as futuras gerações quando nos estudarem nos mitos.

Deusas e Equestres

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

Palas Atena, Palinuro, Parcas, Páris e Pégaso

Mário Amora Ramos

Palas Atena é a deusa grega da sabedoria, equivalente à deusa romana Minerva. O Cavalo de Troia era um cavalo de madeira, presente dos gregos, consagrado a Palas, mas na verdade carregado de soldados para atacarem os troianos. Um autêntico “presente de grego”. Dom Quixote, precavido, quer examinar Clavilenho, o cavalo de madeira do trote dos duques:

“Se bem me lembro, li em Virgílio o caso do Palácio de Troia, que foi um cavalo de madeira, que os gregos consagraram a Palas, e que ia cheio de cavaleiros armados, que depois foram a ruína total de Troia; e assim será bom ver primeiro o que tem Clavilenho no estômago.”

(Si mal no me acuerdo, yo he leído en Virgilio aquello del Paladión de Troya, que fue un caballo de madera que los griegos presentaron a la diosa Palas, el cual iba preñado de caballeros armados, que después fueron la total ruina de Troya; y así, será bien ver primero lo que Clavileño trae en su estómago.) [II, XLI].

Clavilenho também está nos verbetes Belerofonte e Faetonte.

Palinuro era o timoneiro do navio de Eneias, na Eneida, de Virgílio. Dom Luís, enamorado de Clara de Viedma, citou o piloto na canção que dedicou a ela, neste trecho:

“Vou seguindo uma estrela

que desde longe descubro

mais bela e resplandecente

Que quantas viu Palinuro.”

(Siguiendo voy a una estrella

que desde lejos descubro,

más bella y resplandeciente

que cuantas vio Palinuro.) [I, XLIII]

Parcas são as três deusas da mitologia grega que tecem, medem e cortam o fio da vida, como indica esta frase da Condessa Trifaldi: “se já os fados invejosos e as Parcas endurecidas não lhe cortaram o fio da vida” (si ya los hados invidiosos y las parcas endurecidas no la han cortado la estambre de la vida.) [II, XXXVIII].

Páris foi mencionado no verbete Menelau, o rei de Esparta, casado com Helena. Ela foi raptada pelo troiano Páris, o que motivou a guerra de Troia, narrada por Homero na Ilíada (cujo nome deriva de Ilios, o equivalente grego de Troia).

Voltando para sua aldeia, Dom Quixote e Sancho Pança encontram numa estalagem modesta um tapeçaria que retrata “o rapto de Helena, quando o atrevido hóspede a levou de Menelau” (el robo de Elena, cuando el atrevido huésped se la llevó a Menalao) [II, LXXI].

Pégaso foi citado no verbete Belerofonte, matou a Quimera, com a ajuda de Pégaso, seu famoso cavalo alado. Ele é mencionado por Dona Dolorida, a condessa barbada, numa conversa com Sancho, referindo-se a Clavilenho: “O nome – respondeu a Dolorida – não é como o do cavalo de Belerofonte, que se chamava Pégaso” (El nombre -respondió la Dolorida- no es como el caballo de Belorofonte, que se llamaba Pegaso) [II, XL].