Nova Série: William Shakespeare

Referências Mitológicas em Shakespeare

Absirto

Mário Amora Ramos

Há muito a aprender com as tragédias, comédias, dramas históricos e sonetos de William Shakespeare (1564-1616), também autor de alguns poemas.

As referências mitológicas relacionadas a seguir, acompanhadas das principais localizações na obra original, são um bom exemplo do tesouro que é sua obra.

Este texto, e os demais que se seguirão, são uma modesta homenagem ao quarto centenário de sua morte, ocorrida no dia 23 de abril de 2016, no dia de São Jorge, padroeiro da Inglaterra. Sua proteção é aqui invocada, para o sucesso deste trabalho, com esta exortação de Eduardo, conde de March, mais tarde rei Eduardo IV:

“Deus e São Jorge estejam conosco!” (God and Saint George for us!)

[Terceira Parte do Rei Henrique VI, Ato II, Cena I].

Absirto (Absyrtus) aparece uma única vez em toda a obra de Shakespeare.

Jasão, da Tessália, liderou os argonautas (tripulantes do navio Argo) na busca do velocino de ouro, uma pele recoberta da lã de um carneiro fabuloso, que estava na Cólquida, protegido por dragões. Medeia era filha do rei Eetes, da Cólquida.

Como é frequente em muitos mitos, o rei Eetes prometeu-lhe o velocino, desde que o herói cumprisse uma tarefa. Jasão teria de lavrar um campo com dois touros monstruosos e indomados, de cascos de bronze e que expeliam fogo pelas narinas, que lhe tinham sido oferecidos por Hefesto, deus dos ferreiros (Vulcano, na mitologia romana). Em seguida, teria de semear no campo lavrado os dentes de um dragão que fora morto por Cadmo em tempos passados. Segundo alguns relatos, Hera, como protetora de Jasão, pediu a Afrodite que convencesse Eros a fazer Medeia se apaixonar por Jasão. Assim, ela, conhecendo as segundas intenções do seu pai, passa a ajudar o herói. Em troca, ele se casaria com ela, e a levaria consigo no caminho de volta a Iolcos. Medeia oferece, então, ao estrangeiro, um unguento que deveria usar no corpo e no seu escudo, tornando-o invulnerável ao fogo e ao ferro durante um dia – o suficiente para enfrentar os touros e lavrar o campo.

Medeia adverte-o também de que dos dentes de dragão nascerá uma seara de soldados que se virarão contra ele e que o tentarão matar. Contudo, Medeia, dá-lhe uma simples solução para o problema: basta lançar uma pedra, de longe, para o meio desse exército erguido da terra. Os soldados entrariam em discussão sobre quem atirara a pedra e matariam uns aos outros. Com tais conselhos, Jasão executou as tarefas com facilidade e voltou a reclamar o velo de ouro a Eetes.

O rei da Cólquida, furioso, resiste e tenta frustrar de novo os intentos do argonauta, tentando incendiar a nau Argo, além de pretender matar a sua tripulação. É novamente Medeia quem ajuda Jasão a escapar, ao adormecer com narcóticos o dragão que guardava o velo de ouro e avisando-o dos planos do pai. Conseguem, assim, fugir da Cólquida, com o tesouro almejado.

É então que o lado cruel de Medeia se revela pela primeira vez. Quando partem, leva consigo Absirto, seu irmão, sabendo que não tardaria que seu pai lhes fosse no encalço. Para o atrasar, mata o irmão e despedaça-o, dispersando os restos mortais pelo caminho, sabendo que o pai tentaria recolher cada pedaço para lhe dar a sepultura devida.

Há uma referência a este episódio nesta fala do jovem Clifford, partidário de Henrique VI, em versos no original:

“Se eu encontrar um infante da casa de York, cortar-lhe-ei em pedaços, como a cruel Medeia fez com o jovem Absirto.”

(Meet I an infant of the house of York,

Into as many gobbets will I cut it

As wild Medea young Absyrtus did)

[Segunda Parte do Rei Henrique VI, Ato V, Cena II].

Sob Influência de Marte

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

 

Jasão, Júpiter e Marte

Mário Amora Ramos

Jasão era da Tessália, onde também nasceu o guerreiro Aquiles, da guerra de Troia. Ele liderou os argonautas (tripulantes do navio Argo) na busca do Velocino de Ouro, uma pele recoberta da lã de um carneiro fabuloso.

Com o Velocino nas mãos, Jasão foge com Medeia, filha do rei Eetes da Cólquida, e enfrenta várias aventuras na volta para casa. Após dez anos de casado, repudiou Medeia para desposar Gláucia, filha de Creonte, rei de Corinto. Medeia, por vingança, matou Gláucia e os próprios filhos que tivera de Jasão.

No epitáfio de Dom Quixote, num soneto atribuído por Cervantes (jocosamente) ao Monicongo, um acadêmico de Argamasilla, Dom Quixote é descrito como:

“O treloucado que adornou a Mancha

de mais despojos que Jasão de Creta”

(El calvatrueno que adornó a la Mancha

de más despojos que Jasón de Creta) [I, LII]

Há aqui um engano (possivelmente cometido para preservar a rima do soneto) uma vez que Jasão é da Tessália e não de Creta.

Júpiter, na mitologia romana, é o deus supremo, senhor dos raios e das chuvas. Um louco, num sanatório de Sevilha, acreditava ser Júpiter “cuja majestade eu represento” (cuya majestad yo represento) [II, I]. Curiosamente, os loucos não costumam representar divindades de baixo escalão.

Marte é o deus da guerra, na mitologia romana. Ele é mencionado num soneto em louvor a Rocinante, no verso: “que com sangrentas plantas pisa Marte” (que con sangrientas plantas huella Marte) [I, LII].

Marte é mencionado neste comentário de Dom Quixote, para tranquilizar Sancho:

“as quais coisas todas juntas, e cada uma só por si, são bastantes para infundir medo, temor e espanto ao peito do mesmo Marte, quanto mais a quem não está acostumado a semelhantes acontecimentos e aventuras”

(las cuales cosas, todas juntas y cada una por sí, son bastantes a infundir miedo, temor y espanto en el pecho del mesmo Marte, cuanto más en aquel que no está acostumbrado a semejantes acontecimientos y aventuras) [I, XX].

Em conversa com a sobrinha, Dom Quixote expõe suas razões para sair em busca de aventuras: “nasci, pela inclinação que tenho para as armas, sob a influência do planeta Marte” (nací, según me inclino a las armas, debajo de la influencia del planeta Marte) [II, VI].