Adeus da Série “Referências Mitológicas em Dom Quixote”

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

Sinon, Sísifo, Tântalo, Teseu, Tício, Ulisses, Vênus, Vulcano e Zeus

Mário Amora Ramos

Sinon era filho de Sísifo, ao qual é dedicado o próximo verbete. Sinon deixou-se aprisionar pelos troianos para ajudar os compatriotas gregos a infiltrarem o Cavalo de Troia. Cervantes refere-se às “traições de Sinon” (las traiciones de Sinón) [I, XLVII], embora ele tenha sido mais propriamente um agente secreto dentro das linhas inimigas.

O comentarista Martín de Riquer esclarece que “segundo as lendas clássicas [Sinon] era grego, mas no tempo de Cervantes divulgou-se a crença de que era um troiano a serviço do inimigo (como em Troya abrasada, de Calderón e Zabeleta), o que justifica que lhe atribuam traições”.

Sísifo, na mitologia grega, era rei de Corinto, condenado pelos deuses ao suplício de rolar uma pedra pesada para o alto de uma montanha, a qual rolava de volta para baixo, num trabalho improdutivo e interminável. A Canção de Crisóstomo se refere a Sísifo e seu “peso terrível” (peso terrible) [I, XIV].

Tântalo, na mitologia grega, era rei da Frígia, condenado pelos deuses ao suplício da sede, tendo água até o pescoço, e da fome, por não alcançar os frutos da árvore que lhe dava sombra. A Canção de Crisóstomo se refere a “Tântalo com sua sede” (Tántalo con sua sed) [I, XIV].

Teseu, rei de Atenas, matou o Minotauro no labirinto de Creta, ajudado por um fio que lhe foi dado por Ariadne. Dom Quixote adverte Sancho contra os encantadores, que podem envolvê-lo “num labirinto de imaginações, que não conseguirias sair dele, nem que tivesses a corda de Teseu” (en un laberinto de imaginaciones,que no aciertes a salir dél, aunque tuvieses la soga de Teseo). [I, XLVIII].

Tício era um gigante, condenado pelos deuses ao suplício de ter suas entranhas roídas por um abutre. A Canção de Crisóstomo se refere a Tício e “seu abutre” (su buitre) [I, XIV].

Ulisses, também chamado Odisseu, foi o herói da Odisseia, de Homero. Dom Quixote se refere a ele como “prudente e sofrido” (prudente y sufrido) [I, XXV]. V. também Calipso, Cila e Caríbdnis, Circe, Penélope e Polifemo.

Vênus, na mitologia romana, é a deusa do amor. Corresponde a Afrodite, na mitologia grega. Ela aprarece na Canção de Altisidora “nas suas selvas” (en sus selvas) [II, LXII] e nesta referência a Vulcano, “o ciumento deus dos ferreiros que prendeu Vênus e Marte numa rede” (el celoso dios de los herreros enredó a Venus y a Marte) [II, LXVIII].

Vulcano, na mitologia romana, é o deus dos ferreiros, equivalente a Hefesto, na mitologia grega. Ele aparece indiretamente como “deus das ferrarias” (dios de las herrerías) [I, XXI] e como “o ciumento deus dos ferreiros”, no verbete acima.

Zeus, o deus supremo dos gregos, não é mencionado diretamente em Dom Quixote, mas aparece nos verbetes Dânais, Faetonte e Plêiades. Há, no entanto, um verbete referente a Júpiter, seu equivalente na mitologia romana.

Encerram-se aqui as referências mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, numa modesta homenagem ao quarto centenário da morte do autor, em 1516.

Deusas e Equestres

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

Palas Atena, Palinuro, Parcas, Páris e Pégaso

Mário Amora Ramos

Palas Atena é a deusa grega da sabedoria, equivalente à deusa romana Minerva. O Cavalo de Troia era um cavalo de madeira, presente dos gregos, consagrado a Palas, mas na verdade carregado de soldados para atacarem os troianos. Um autêntico “presente de grego”. Dom Quixote, precavido, quer examinar Clavilenho, o cavalo de madeira do trote dos duques:

“Se bem me lembro, li em Virgílio o caso do Palácio de Troia, que foi um cavalo de madeira, que os gregos consagraram a Palas, e que ia cheio de cavaleiros armados, que depois foram a ruína total de Troia; e assim será bom ver primeiro o que tem Clavilenho no estômago.”

(Si mal no me acuerdo, yo he leído en Virgilio aquello del Paladión de Troya, que fue un caballo de madera que los griegos presentaron a la diosa Palas, el cual iba preñado de caballeros armados, que después fueron la total ruina de Troya; y así, será bien ver primero lo que Clavileño trae en su estómago.) [II, XLI].

Clavilenho também está nos verbetes Belerofonte e Faetonte.

Palinuro era o timoneiro do navio de Eneias, na Eneida, de Virgílio. Dom Luís, enamorado de Clara de Viedma, citou o piloto na canção que dedicou a ela, neste trecho:

“Vou seguindo uma estrela

que desde longe descubro

mais bela e resplandecente

Que quantas viu Palinuro.”

(Siguiendo voy a una estrella

que desde lejos descubro,

más bella y resplandeciente

que cuantas vio Palinuro.) [I, XLIII]

Parcas são as três deusas da mitologia grega que tecem, medem e cortam o fio da vida, como indica esta frase da Condessa Trifaldi: “se já os fados invejosos e as Parcas endurecidas não lhe cortaram o fio da vida” (si ya los hados invidiosos y las parcas endurecidas no la han cortado la estambre de la vida.) [II, XXXVIII].

Páris foi mencionado no verbete Menelau, o rei de Esparta, casado com Helena. Ela foi raptada pelo troiano Páris, o que motivou a guerra de Troia, narrada por Homero na Ilíada (cujo nome deriva de Ilios, o equivalente grego de Troia).

Voltando para sua aldeia, Dom Quixote e Sancho Pança encontram numa estalagem modesta um tapeçaria que retrata “o rapto de Helena, quando o atrevido hóspede a levou de Menelau” (el robo de Elena, cuando el atrevido huésped se la llevó a Menalao) [II, LXXI].

Pégaso foi citado no verbete Belerofonte, matou a Quimera, com a ajuda de Pégaso, seu famoso cavalo alado. Ele é mencionado por Dona Dolorida, a condessa barbada, numa conversa com Sancho, referindo-se a Clavilenho: “O nome – respondeu a Dolorida – não é como o do cavalo de Belerofonte, que se chamava Pégaso” (El nombre -respondió la Dolorida- no es como el caballo de Belorofonte, que se llamaba Pegaso) [II, XL].

Raptos, Inspirações e Mulheres Poderosas

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

 

Medeia, Medusa, Menelau e as Musas

Mário Amora Ramos

Medeia foi citada no verbete relativo a Jasão. Ela era filha do rei Eetes, da Cólquida. Após conquistar o Velocino de Ouro, uma pele recoberta da lã de um carneiro fabuloso, Jasão fugiu com Medeia e enfrentou várias aventuras na volta para casa. Após dez anos de casado, ele repudiou Medeia para desposar Gláucia, filha de Creonte, rei de Corinto. Medeia, por vingança, matou Gláucia e os próprios filhos que tivera de Jasão.

Ela é citada de passagem no Prólogo do Primeiro Livro, como símbolo de crueldade: “Se tratardes de cruéis, Ovídio porá Medeia à vossa disposição”  [Si tratáredes de (…) crueles, Ovidio os entregará a Medea].

Medusa foi citada no verbete relativo a Dânae. Medusa era a única mortal das três irmãs chamadas Górgonas. Medusa gabou-se de sua beleza para a deusa Atena, que ficou com inveja e transformou-a num ser horrendo, com cobras vivas no lugar de cabelos. Eram tão feias que quem as olhava se transformava em pedra. Perseu, filho de Dânae, matou a Medusa usando um escudo polido como um espelho para olhá-la indiretamente.

Num galanteio, Dom Quixote promete dar à filha de um hospedeiro, se ela os pedisse, “uma madeixa dos cabelos de Medusa, que eram todos cobras, ou os próprios raios do sol encerrados numa redoma” (una guedeja de los cabellos de Medusa, que eran todos culebras, o ya los mesmos rayos del sol encerrados en una redoma) [I, XLIII].

Menelau foi citado no verbete relativo a Helena. Ele era o rei de Esparta, casado com Helena. Ela foi raptada pelo troiano Páris, o que motivou a guerra de Troia, narrada por Homero na Ilíada (cujo nome deriva de Ilios, o equivalente grego de Troia).

Voltando para sua aldeia, Dom Quixote e Sancho Pança encontram numa estalagem modesta um tapeçaria que retrata “o rapto de Helena, quando o atrevido hóspede a levou de Menelau” (el robo de Elena, cuando el atrevido huésped se la llevó a Menalao) [II, LXXI].

Minos e Radamanto foram citados no verbete relativo aos Campos Elísios, a morada das pessoas virtuosas após a morte, se os três juízes dos infernos (Eaco, Minos e Radamanto) decidissem que tinham tido uma vida digna. Minos e Radamanto são personagens de um trote pregados pelos duques em Dom Quixote e Sancho Pança [II, LXIX].

Musas, na mitologia grega, são nove ninfas protetoras das artes: Clio (história), Euterpe (música), Tália (comédia e poesia pastoral), Melpômene (tragédia), Terpsícore (dança) Érato (elegia), Polínia (poesia lírica), Urânia (astronomia) e Calíope (eloquência).

Np Prólogo do Primeiro Livro, Cervantes lamenta o desconforto do cárcere e a falta de condições nas quais “as musas mais estéreis se mostrem fecundas” (las musas más estériles se muestren fecundas). No Segundo Livro, Dom Quixote cita o deus romano Febo a as musas ao elogiar os versos de Dom Lourenço [II, XVIII].

Sob Influência de Marte

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

 

Jasão, Júpiter e Marte

Mário Amora Ramos

Jasão era da Tessália, onde também nasceu o guerreiro Aquiles, da guerra de Troia. Ele liderou os argonautas (tripulantes do navio Argo) na busca do Velocino de Ouro, uma pele recoberta da lã de um carneiro fabuloso.

Com o Velocino nas mãos, Jasão foge com Medeia, filha do rei Eetes da Cólquida, e enfrenta várias aventuras na volta para casa. Após dez anos de casado, repudiou Medeia para desposar Gláucia, filha de Creonte, rei de Corinto. Medeia, por vingança, matou Gláucia e os próprios filhos que tivera de Jasão.

No epitáfio de Dom Quixote, num soneto atribuído por Cervantes (jocosamente) ao Monicongo, um acadêmico de Argamasilla, Dom Quixote é descrito como:

“O treloucado que adornou a Mancha

de mais despojos que Jasão de Creta”

(El calvatrueno que adornó a la Mancha

de más despojos que Jasón de Creta) [I, LII]

Há aqui um engano (possivelmente cometido para preservar a rima do soneto) uma vez que Jasão é da Tessália e não de Creta.

Júpiter, na mitologia romana, é o deus supremo, senhor dos raios e das chuvas. Um louco, num sanatório de Sevilha, acreditava ser Júpiter “cuja majestade eu represento” (cuya majestad yo represento) [II, I]. Curiosamente, os loucos não costumam representar divindades de baixo escalão.

Marte é o deus da guerra, na mitologia romana. Ele é mencionado num soneto em louvor a Rocinante, no verso: “que com sangrentas plantas pisa Marte” (que con sangrientas plantas huella Marte) [I, LII].

Marte é mencionado neste comentário de Dom Quixote, para tranquilizar Sancho:

“as quais coisas todas juntas, e cada uma só por si, são bastantes para infundir medo, temor e espanto ao peito do mesmo Marte, quanto mais a quem não está acostumado a semelhantes acontecimentos e aventuras”

(las cuales cosas, todas juntas y cada una por sí, son bastantes a infundir miedo, temor y espanto en el pecho del mesmo Marte, cuanto más en aquel que no está acostumbrado a semejantes acontecimientos y aventuras) [I, XX].

Em conversa com a sobrinha, Dom Quixote expõe suas razões para sair em busca de aventuras: “nasci, pela inclinação que tenho para as armas, sob a influência do planeta Marte” (nací, según me inclino a las armas, debajo de la influencia del planeta Marte) [II, VI].

Voltamos

Eu queria dizer que a ausência da coluna do Mário durante a minha ausência foi inteiramente minha culpa. Voltamos com a programação normal. Para minha sorte, os verbetes dessa coluna falam bastante sobre renascimento. Apropriado.


 

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

 

Estige, Euríalo e Niso, Faetonte, Faunos, Febo e Fênix

 

Mário Amora Ramos

 

Estige é o rio que circunda o Hades, o inferno grego. Ele foi mencionado no verbete Aquiles, uma vez que sua mãe, Tétis, o mergulhou no rio Estige para torná-lo invulnerável, mas a água não molhou o calcanhar, por onde ela o segurava.

 

O rio Estige foi também mencionado no verbete Caronte, o velho barqueiro do Hades, filho de Érebo (Escuridão) e da Noite, que transportava as almas dos mortos para o outro lado do rio.

 

O nome do rio, em grego, significa Detestável e, em inglês, escreve-se Styx. Na encenação da morte de Altisidora, num dos trotes dos duques, um mancebo cantou que sua alma ia “por el estigio lago conducida” (pelo estígio lago conduzida) [II, LXIX].

 

Euríalo e Niso são dois jovens troianos que acompanharam Eneias, segundo a Eneida, de Virgílio. Eles simbolizam uma grande amizade. Há referências à “amizade de Euríalo” (la amistad de Eurialio) [I, XLVII], com grafia incorreta no original cervantino, e à amizade que “tiveram Euríalo e Niso” (que tuvieron Niso e Euríalo) [II, XII], desta vez com a grafia correta.

 

Faetonte é filho de Hélio, o primeiro deus do Sol da mitologia grega. Hélio era filho do titãs Hipérion e Teia, bem como irmão de Aurora. Apolo é também considerado o deus do Sol.

 

Faetonte tentou dirigir a carruagem do pai e quase incendiou a Terra, se Zeus, o deus supremo dos gregos, não o tivesse derrubado com um raio. Ele não é citado diretamente, mas, no episódio do voo de Clavilenho, Dom Quixote assim alerta Sancho:

 

“- Segura-te, valoroso Sancho, que te bamboleias! Vê não caias, que a tua queda seria pior que a do atrevido moço que quis governar o carro do Sol seu pai.”

 

(-¡Tente, valeroso Sancho, que te bamboleas! ¡Mira no cayas, que será peor tu caída que la del atrevido mozo que quiso regir el carro del Sol, su padre!) [II, XLI].

 

Faunos, na mitologia romana, correspondem aos sátiros, da mitologia grega. Foram citados por Dom Quixote em sua penitência na Serra Morena [I, XXVI].

 

Febo é o equivalente grego de Apolo, o deus da poesia. Dom Quixote cita Febo a as musas ao elogiar os versos de Dom Lourenço [II, XVIII]. Febo é também identificado como o Sol [II, XLV].

 

Fênix é uma ave da mitologia egípcia, bela e solitária, que vivia no deserto da Arábia por 500 ou 600 anos e se consumia pelo fogo, renascendo de suas próprias cinzas, para um novo ciclo de vida. É um símbolo de imortalidade e renovação. A Condessa Trifaldi referiu-se à “fênix da Arábia” (el fénix de Arabia) (II, XXXVIII) como exemplo ilustrativo das promessas do sedutor Dom Clavijo à infanta Antonomásia.

 

A capital do Arizona nos Estados Unidos (Phoenix) deve seu nome à ave mitológica. O nome é de origem grega e deriva da região da Fenícia (Phoenicia).

Heróis Desafortunados

Nota da Edição: Fiquei doente, bem caidinha, e perdi o ritmo de colocar as postagens em dia. Peço desculpas. Segue o texto do Mário.


Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

 

Egião e Eneias

Mário Amora Ramos

Egião foi mencionado no verbete Danaida. Na Canção de Crisóstomo há uma referência implícita às danaidas, condenadas a encher eternamente um tonel sem fundo, referidas como “as irmãs que trabalham tanto” (las hermanas que trabajan tanto) [I, XIV]. Além delas, o poema se refere a outros quatro personagens punidos com um suplício eterno: Egião (do grego Egeon), condenado a girar eternamente amarrado a uma roda, Sísifo, sentenciado ao trabalho improdutivo de rolar uma pedra para o alto de uma montanha, Tântalo, castigado com a fome a sede, e Tício, cujas entranhas seriam eternamente roídas por um abutre.

Egião aparece neste verso: “Com sua roda Egião não se detenha” (con su rueda Egïón no se detenga) ) [I, XIV]. Egião, também conhecido como Ixião, era o rei da Tessália, terra natal do guerreiro Aquiles, da guerra de Troia, e de Jasão, que conduziu os argonautas à procura do velocino de ouro, uma pele recoberta da lã de um carneiro fabuloso.

Não confundir com Egeu, rei de Atenas, que se afogou por achar que seu filho Teseu tinha morrido.

Eneias, o herói troiano, foi mencionado no verbete Dido, a Rainha de Cartago.

 

Eneias foi citado por Dom Quixote, em sua penitência na Serra Morena, neste trecho: “como também nos mostrou Virgílio, na pessoa de Eneias, o valor de um filho piedoso e a sagacidade de un valente e entendido capitão” (como también nos mostró Virgilio, en persona de Eneas, el valor de un hijo piadoso y la sagacidad de un valiente y entendido capitán) [I, XXV]. Mais adiante, há nova referência à “piedade de Eneias” (la piedad de Eneas) [I, XLVII]. Como se sabe, Eneias salvou seu pai Anquises do incêndio de Troia, carregando-o nas costas.

 

Dom Quixote, ao se dirigir à Dona Rodríguez, menciona que “o traidor e atrevido Eneias aproveitou-se da formosa e piedosa Dido” (el traidor y atrevido Eneas gozó a la hermosa y piadosa Dido) [II, XVIII]. O próprio Dom Quixote admite, num capítulo anterior, que “não foi tão piedoso Eneias como Virgilio o pinta” (no fue tan piadoso Eneas como Virgilio le pinta) [II, III]. Segundo a Eneida, no entanto, o deus Júpiter ordenara-lhe que partisse.

 

Altisidora, em conversa com sua amiga Emerência, comparou Dom Quixote a um “novo Eneias” (nuevo Eneas) [II, XLIV]. Na canção que compôs para o cavaleiro, Altisidora se referiu a ele como um “fugitivo Eneias” (fugitivo Eneas) [II, LVII].

 

Voltando para sua aldeia, Dom Quixote e Sancho Pança encontram numa estalagem uma tapeçaria que retrata a história de Dido e de Eneias: “ela, numa alta torre, acenando com meio lençol para o fugitivo hóspede, que fugia pelo mar numa fragata ou bergantim” (ella sobre una alta torre, como que hacía señas con una media sábana al fugitivo huésped, que por el mar, sobre una fragata o bergantín, se iba huyendo) [II, LXXI].

Após a queda de Troia, Eneias conduziu um grupo de seguidores para fundar um nova nação na Itália. Ele é considerado ancestral de Rômulo, o fundador de Roma.


Belas e Abandonadas

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

 

Dido, Dite, as Dríades e Eco

Mário Amora Ramos

Dido, a Rainha de Cartago, apaixonou-se pelo herói troiano Eneias, que posteriormente a abandonou, como conta a Eneida, de Virgílio, no livro IV.

 

Dom Quixote refere-se a Dido, ao se dirigir à Dona Rodríguez, nesta fala:

“A vós mesma – replicou Dom Quixote; – porque nem eu sou de mármore, nem vós sois de bronze, e não são dez horas do dia, é meia-noite, e ainda um pouco mais, ao que imagino, e em uma estância mais cerrada e secreta do que devia ser a cova em que o traidor e atrevido Eneias aproveitou-se da formosa e piedosa Dido.”

 

(-A vos y de vos la pido -replicó don Quijote-, porque ni yo soy de mármol ni vos de bronce, ni ahora son las diez del día, sino media noche, y aun un poco más, según imagino, y en una estancia más cerrada y secreta que lo debió de ser la cueva donde el traidor y atrevido Eneas gozó a la hermosa y piadosa Dido.) [II, XVIII].

 

Mais adiante, voltando para sua aldeia, Dom Quixote e Sancho Pança encontram numa estalagem modesta uma tapeçaria que retrata “a história de Dido e de Eneias: ela, numa alta torre, acenando com meio lençol para o fugitivo hóspede, que fugia pelo mar numa fragata ou bergantim” (la historia de Dido y de Eneas, ella sobre una alta torre, como que hacía señas con una media sábana al fugitivo huésped, que por el mar, sobre una fragata o bergantín, se iba huyendo). O autor acrescenta que “a formosa Dido parecia que vertia lágrimas do tamanho de nozes” (la hermosa Dido mostraba verter lágrimas del tamaño de nueces por los ojos) [II, LXXI].

Dite, na mitologia romana, corresponde a Plutão, o rei do inferno da mitologia grega.

Numa encenação no castelo dos Duques, o mago Merlim diz num de seus versos que estava “Nas cavernas lôbregas de Dite” (En las cavernas lóbregas de Dite) [II, XXXV].

Mais adiante, a mesma expressão volta a aparecer numa encenação da morte de Altisidora, quando Minos, um dos três juízes dos mortos, dirige-se a Radamanto (outro juiz, ambos já apresentados no verbete Campos Elísios, juntamente com Eaco, o terceiro juiz).

Dríades (em espanhol, dríadas) são as ninfas dos bosques da mitologia grega, citadas de passagem por Dom Quixote, em sua penitência na Serra Morena [I, XXV], juntamente com as napeias (em espanhol, napeas), que eram as ninfas do vale.

Eco era uma ninfa da mitologia grega que, por seu amor não correspondido pro Narciso, sucumbiu até que só restou sua voz. Ela é a “dolorosa e úmida Eco” (la dolorosa y húmida Eco) [I, XXVI], por suas muitas lágrimas.

Dânae e Diana

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

 

Dânae e Diana

Mário Amora Ramos

Dânae era a mãe de Perseu, aquele que matou a Medusa, a única mortal das três irmãs chamadas Górgonas. Medusa gabou-se de sua beleza para a deusa Atena, que ficou com inveja e transformou-a num ser horrendo, com cobras vivas no lugar de cabelos. Eram tão feias que quem as olhava se transformava em pedra. Perseu usou um escudo polido como um espelho para olhá-la indiretamente.

O Rei Acrísio, para evitar que se cumprisse a profecia de que um neto o mataria, encarcerou Dânae, sua única filha, numa torre. Júpiter, para conquistá-la, transformou-se numa chuva de ouro. Quem resistiria a um conquistador assim?

Dânae aparece num pequeno poema, na Novela do Curioso Impertinente, reproduzida abaixo na tradução dos Viscondes de Castilho e Azevedo:

“É como o vidro a mulher;/ Mas não é mister provar

Se se pode ou não quebrar,/ Porque tudo pode ser.

(…)

Fiquem nisto, e ficam bem,/ Pois nisto o conselho fundo:

Que se há Dânaes neste mundo,/ Há chuvas de ouro também.”

(Es de vidrio la mujer;/ pero no se ha de probar

Si se puede o no quebrar,/ porque todo podría ser.

(…)

Y en esta opinión estén/ todos, y en razón la fundo:

Que si hay Dánaes en el mundo,/ hay pluvias de oro también.) [I, XXXIII]

Diana já foi apresentada no verbete dedicado a Acteão. A mitologia deusa latina Diana equivale, na mitologia grega, a Ártemis, a deusa da caça e da lua.

Dom Quixote refere-se indiretamente a ela quando menciona a “luminária de três faces” (luminaria de las tres caras) [I, XLIII], correspondentes à lua cheia e aos quartos crescente e minguante.

Seu famoso templo, “uma das sete maravilhas do mundo” (una de las siete maravillas del mundo) [II, VIII] é citado de passagem por Dom Quixote. A donzela Altisidora refere-se a si mesma, num curto poema, como “a mais formosa donzela/que Diana viu em seus montes” (la más hermosa doncella/ que Diana vio en sus montes) [II, LVII]. Diana é ainda mencionada na frase de abertura do seguinte capítulo:

“Era a noite algo escura, uma vez que a lua estava no céu, mas não em parte que pudesse ser vista: algumas vezes a senhora Diana vai passear pelos antípodas e deixa os montes negros e os vales escuros.”

(Era la noche algo escura, puesto que la luna estaba en el cielo, pero no en parte que pudiese ser vista: que tal vez la señora Diana se va a pasear a los antípodas, y deja los montes negros y los valles escuros.) [II, LXVIII].

Ninfas e Castigadas

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

 

Dafne e as Danaidas

Mário Amora Ramos

Dafne era filha do deus fluvial Peneu, da mitologia grega. Queria ser ser caçadora e permanecer solteira como sua protetora Ártemis. Eros feriu Dafne com uma flecha de chumbo a fim de impedi-la de amar alguém e, ao mesmo tempo, feriu Apolo com uma flecha de ouro, para que ele se apaixonasse por Dafne.

Apolo perseguia Dafne até que, quando ele estava prestes a apanhá-la, Dafne recorreu ao pai para protegê-la. Peneu transformou-a num loureiro e Apolo fez do loureiro (Laurus nobilis) sua árvore sagrada e usou uma grinalda de folhas de louro como coroa. A partir daí, a coroa de louros passou a ser um símbolo de triunfo.

Dom Quixote não a cita diretamente, mas fica implícito que se refere a ela quando se dirige ao sol (Apolo, na mitologia grega):

“E tu, sol, que já deves estar à pressa selando teus cavalos para madrugar e sair a ver a minha senhora [Dulcineia], logo que a vejas suplico-te que da minha parte a saúdes; mas livra-te de que, ao vê-la e saudá-la, lhe dês ósculo no rosto, que terei mais ciúmes de ti do que tu mesmo os tiveste daquela ágil ingrata que te fez suar e correr pelos planos da Tessália, ou pelas margens do Peneu, que não me lembro bem por onde correste, ciumento e enamorado.”

(Y tú, sol, que ya debes de estar apriesa ensillando tus caballos, por madrugar y salir a ver a mi señora, así como la veas, suplícote que de mi parte la saludes; pero guárdate que al verla y saludarla no le des paz en el rostro, que tendré más celos de ti que tú los tuviste de aquella ligera ingrata que tanto te hizo sudar y correr por los llanos de Tesalia, o por las riberas de Peneo, que no me acuerdo bien por dónde corriste entonces celoso y enamorado.) [I, XLIII]

Mais adiante, no discurso no qual o barbeiro, disfarçado, pede a Dom Quixote que não se aflija com a prisão, ele (o barbeiro) refere-se ao sol como “o seguidor da fugitiva ninfa” (el seguidor de la fugitiva ninfa) [I, XL

Danaida era qualquer uma das cinquenta filhas de Dânaos, rei de Argos e dos argivos (isto é, os gregos) que, com exceção de uma, mataram seus maridos na noite de núpcias. Foram condenadas a encher eternamente um tonel sem fundo.

Na Canção de Crisóstomo há uma referência implícita às danaidas, referidas como “as irmãs que trabalham tanto” (las hermanas que trabajan tanto) [I, XIV]. Além delas, o poema também se refere a outros quatro personagens punidos com um suplício eterno: Egião, condenado a girar eternamente amarrado a uma roda, Sísifo, sentenciado ao trabalho improdutivo de rolar uma pedra para o alto de uma montanha, Tântalo, castigado com a fome a sede, e Tício, cujas entranhas seriam eternamente roídas por um abutre.

Hércules, Cupido e Cervantes

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

 

Colunas de Hércules e Cupido

Mário Amora Ramos

Colunas de Hércules é o nome dado aos montes que delimitam o estreito de Gibraltar, situados, respectivamente, na Espanha e no Marrocos. Mestre Pedro (na verdade, Ginés de Pasamonte, um espertalhão que enganava os incrédulos com um macaco adivinho) abraçou Dom Quixote pelas pernas e assim o saudou:

“_ Abraço estas pernas como se abraçasse as duas colunas de Hércules, ó ressuscitador insigne da já olvidada cavalaria andante! Ó nunca assaz louvado cavaleiro Dom Quixote de la Mancha, ânimo dos desmaiados, arrimo dos que vão a cair, braço dos caídos, báculo e consolação de todos os desditosos!”

(_ Estas piernas abrazo, bien así como si abrazara las dos colunas de Hércules, ¡oh resucitador insigne de la ya puesta en olvido andante caballería!; ¡oh no jamás como se debe alabado caballero don Quijote de la Mancha, ánimo de los desmayados, arrimo de los que van a caer, brazo de los caídos, báculo y consuelo de todos los desdichados!) [II, XXV]

Hércules já foi mencionado, no verbete dedicado ao gigante Anteu, e retornará em breve, em seu próprio verbete.

Cupido, filho de Vênus e deus do amor na mitologia romana, equivale a Eros, filho de Afrodite, na mitologia grega. Deles originam-se os adjetivos “erótico” e “afrodisíaco”. Cupido apareceu brevemente, com seu arco e setas, no verbete dedicado a Caronte. Cupido também foi personagem de uma encenação teatral nas bodas de Camacho, onde recita estes versos:

“Eu sou o deus poderoso/ No firmamento e na terra,

E no vasto mar undoso/ E em tudo o que o abismo encerra

No seu báratro espantoso./ Nunca soube o que era medo;

Tenho o mágico segredo/ De conquistar o impossível,

E em tudo quanto é possível/ Mando, tiro, ponho e vedo.”

(-Yo soy el dios poderoso/ en el aire y en la tierra

y en el ancho mar undoso,/ y en cuanto el abismo encierra

en su báratro espantoso./ Nunca conocí qué es miedo;

todo cuanto quiero puedo,/ aunque quiera lo imposible,

y en todo lo que es posible/ mando, quito, pongo y vedo.) [II, XX]

Ele foi o “o menininho cego” (el niño ceguezuelo) (II, LVI) responsável pela súbita paixão do lacaio Tosilos pela filha de Dona Rodrigues.

A mesma imagem foi usada por Sancho, quando comentava o entusiasmo de Altisidora por Dom Quixote, ao dizer que ela “deve ter sido ferida e transpassada por aquele que chamam Amor, que dizem que é um rapaz ceguinho” (la debe de tener herida y traspasada aquel que llaman Amor, que dicen que es un rapaz ceguezuelo) [II, LVIII].


Seria esta fala de Cupido a inspiração para a mais famosa música de “O Homem de la Mancha”?