Amadurecimento

Ártemis versus as Princesas Disney:

 

A deusa Ártemis é aquela responsável pelos ritos de passagem da infância para a vida adulta. O objetivo deste texto é explicar esta deusa, usando, para isso, as Princesas Disney como exemplo e metáfora. Serão analisadas: Ariel, Aurora, Bela, Branca de Neve e Cinderela; todas adolescentes no limite do casamento (rito de passagem). No entanto, todas essas meninas querem fazer a passagem, ao contrário da deusa eternamente virgem.

Ártemis é a deusa das fronteiras; limites. Trata-se de uma deusa cheia de ambigüidades. Ela é responsável pela passagem para a idade adulta. Também é quem cuida dos animais e dos bosques, em oposição com o homem civilizado. Cuida e sacrifica, protege e caça; tanto homens como feras. Quer se manter virgem, fora do jugo do casamento; assim também o fazem seus protegidos, que a maioria acaba sendo sacrificado (direta ou indiretamente) por causa da deusa enquanto ainda são adolescentes.  Segundo Jean-Pierre Vernant: “…, trata-se dos confins, das zonas limítrofes, das fronteiras onde o Outro se manifesta no contato que regularmente se mantém com ele,…”.

Uma das funções de Ártemis é a de kuróthropa, ou seja, aquela que nutre os jovens. Ela cuida e nutre os animais e os humanos, ajuda-os a crescer até que possam se cuidar sozinhos. Vemos esse traço muito claramente na Cinderela que cuida e veste os ratos e passarinhos, além de ser a responsável por alimentar todos os animais.

A deusa é a senhora dos bosques e das feras, o que marca as fronteiras entre o animal e o homem, e entre a civilização e o mundo selvagem. Na mitologia sobre Ártemis os homens e as feras aparecem sempre misturados. Vemos os homens sendo sacrificados em lugar dos animais e os animais em lugar dos homens. Exemplos são: Ácteon sendo morto como corsa; a cabra sendo morta no lugar da filha de Embaros, entre outros. Citando Kérenyi: “As meninas vestidas para tomar parte no culto de Ártemis, e representativas do grupo da mesma faixa etária de que falamos, chamavam-se arktoi, “fêmeas de urso”; o serviço delas, a celebração do seu estágio de vida, chamava-se arktoia, “estado de ursa”, cuja explicação era a seguinte: “Porque elas agem como fêmeas de urso”.”. Ariel é metade peixe (animal) metade homem e só consegue cumprir seu rito de passagem quando se vê livre de sua metade animal. Branca de Neve é substituída por um animal na hora que o caçador apresenta o coração dela à rainha.

Os templos consagrados à Ártemis eram sempre fora da cidade, em locais próximos à natureza. A deusa não gostava da pólis, preferindo bosques e montanhas onde pudesse caçar. Ao mesmo tempo, era ela quem preparava os jovens para a civilização. Segundo Vernant:

“Quanto aos filhos dos homens, ela os conduz até o limiar da adolescência, que eles deverão – deixando em suas mãos a vida juvenil – ultrapassar com sua concordância e ajuda, para chegar, através dos rituais de iniciação que ela preside, à plena sociabilidade – a mocinha, investindo-se na condição de esposa e mão, o efebo, na de cidadão-soldado. ”

Essas diferenças entre o selvagem e o civilizado estão muito presentes nos filmes da Disney. Cinderela encontra ajuda divina (para conhecer o príncipe) em um local mais próximo à natureza; Aurora é escondida, enquanto criança, por divindades em uma floresta e vai ser apresentada à civilização no mesmo dia em que conhecerá seu noivo; a pequena sereia só consegue chegar na cidade quando “morre” a sereia e fica a mulher e Branca de Neve se refugia em uma floresta para esperar o príncipe. A Bela e a Fera marcam um contraste: ela representa a civilização e ele a selvageria; no entanto, ela vem de uma sociedade marca pela caça (como vemos com Gastão e seus troféus) e ele é selvagem mas já foi um nobre príncipe. O castelo da Fera está na fronteira entre a natureza e a cidade.

Para o homem adulto, grego, a natureza aparecia como perigosa: lugar onde estavam os animais ferozes e guardado pela deusa que não gostava de homens adultos. “Ao perseguir os animais para matá-los, o caçador penetra o terreno da selvageria.” (Vernant).  Walt Disney representa, em alguns de seus filmes, a natureza hostil e assustadora, exemplos: Branca de Neve em sua fuga pela floresta; Bela e seu pai quando precisam chegar ou sair do castelo da Fera e o caçador Gastão que vê imediatamente a Fera como uma ameaça àquela sociedade civilizada.

Outro aspecto de Ártemis é sua natureza sanguinária que exige sacrifícios como pagamento ao que ela considera como ofensa. Muitas vezes são sacrifícios humanos, como Ifigênia, por exemplo. Marca de outra ambigüidade da deusa que sacrifica aqueles que ela protege. Aurora está jurada de morte e a ameaça é de que isso vai acontecer antes que ela vire adulta e, no caso da Branca de Neve, a rainha manda que o caçador a sacrifique em nome da vaidade da rainha.

Os ritos de passagem de Ártemis envolvem o casamento e a sexualidade. A deusa é virgem, quer se manter virgem, e apresenta uma sexualidade mais viril, representada pela caça, pela guerra e por uma imagem corporal mais musculosa, assim como um corpo masculino.  Os afilhados da deusa também rejeitam a sexualidade, exemplo Hipólito. Nos mitos em que isso é quebrado, o sexo aparece representado num animal: Zeus como urso no mito de Calistos, Ácteon virando urso por ter visto a deusa nua e Hipólito que é morto como um animal após ter sido amaldiçoado pelo pai que pensava que ele estava apaixonado pela madrasta. A Fera representa esse masculino como animal. As Princesas Disney, em contraposição, são a marca da feminilidade: ainda não fizeram o rito de passagem, mas estão sonhando com o amor e o casamento; cumprem as tarefas de donas de casa, as imagens estão sempre relacionadas com flores e pequenos animais, além das formas definidas e as curvas bem demarcadas.

Uma última imagem a ser feita é a correlação entre a noiva e a morte. Correlação esta, bem representada pela tragédia de Ifigênia em Áulis. O casamento é o rito de passagem da infância para a vida adulta. A noiva representa a morte da menina e o nascimento da mulher. Há toda uma forma de vida típica da infância que deverá desaparecer com o casamento, vemos isso em todas as Princesas que abandonam suas casas, os pequenos animais, o ambiente natural em que viviam após o casamento (Bela após beijar a Fera transforma o lado animal dele e todos no castelo, mostrando um novo mundo que surge). Porém, podemos fazer um paralelo mais específico com a Aurora e a Branca de Neve que precisam morrer para cumprir seus ritos.

Podemos concluir desse texto que as imagens que se tem representando o fim da adolescência continuam as mesmas desde a Grécia até os tempos de hoje. As histórias dos mitos que serviam para educar as crianças foram substituídas, hoje em dia, pelos filmes de Walt Disney, entretanto, todos os arquétipos continuam presentes, mesmo que por vezes mais escondidos. Vemos ainda a necessidade de uma representação imagética e metafórica das mudanças e contradições de uma fase da vida.

Os desenhos animados da Disney vêm funcionando, na educação das crianças, como uma mitologia contemporânea.

Dânae e Diana

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

 

Dânae e Diana

Mário Amora Ramos

Dânae era a mãe de Perseu, aquele que matou a Medusa, a única mortal das três irmãs chamadas Górgonas. Medusa gabou-se de sua beleza para a deusa Atena, que ficou com inveja e transformou-a num ser horrendo, com cobras vivas no lugar de cabelos. Eram tão feias que quem as olhava se transformava em pedra. Perseu usou um escudo polido como um espelho para olhá-la indiretamente.

O Rei Acrísio, para evitar que se cumprisse a profecia de que um neto o mataria, encarcerou Dânae, sua única filha, numa torre. Júpiter, para conquistá-la, transformou-se numa chuva de ouro. Quem resistiria a um conquistador assim?

Dânae aparece num pequeno poema, na Novela do Curioso Impertinente, reproduzida abaixo na tradução dos Viscondes de Castilho e Azevedo:

“É como o vidro a mulher;/ Mas não é mister provar

Se se pode ou não quebrar,/ Porque tudo pode ser.

(…)

Fiquem nisto, e ficam bem,/ Pois nisto o conselho fundo:

Que se há Dânaes neste mundo,/ Há chuvas de ouro também.”

(Es de vidrio la mujer;/ pero no se ha de probar

Si se puede o no quebrar,/ porque todo podría ser.

(…)

Y en esta opinión estén/ todos, y en razón la fundo:

Que si hay Dánaes en el mundo,/ hay pluvias de oro también.) [I, XXXIII]

Diana já foi apresentada no verbete dedicado a Acteão. A mitologia deusa latina Diana equivale, na mitologia grega, a Ártemis, a deusa da caça e da lua.

Dom Quixote refere-se indiretamente a ela quando menciona a “luminária de três faces” (luminaria de las tres caras) [I, XLIII], correspondentes à lua cheia e aos quartos crescente e minguante.

Seu famoso templo, “uma das sete maravilhas do mundo” (una de las siete maravillas del mundo) [II, VIII] é citado de passagem por Dom Quixote. A donzela Altisidora refere-se a si mesma, num curto poema, como “a mais formosa donzela/que Diana viu em seus montes” (la más hermosa doncella/ que Diana vio en sus montes) [II, LVII]. Diana é ainda mencionada na frase de abertura do seguinte capítulo:

“Era a noite algo escura, uma vez que a lua estava no céu, mas não em parte que pudesse ser vista: algumas vezes a senhora Diana vai passear pelos antípodas e deixa os montes negros e os vales escuros.”

(Era la noche algo escura, puesto que la luna estaba en el cielo, pero no en parte que pudiese ser vista: que tal vez la señora Diana se va a pasear a los antípodas, y deja los montes negros y los valles escuros.) [II, LXVIII].