Boas Novas! Mais do que um outro colaborador; consegui um novo colunista!
Meu querido tio e amante da literatura, Mário, combinou de palpitar por aqui sobre Mitologia e Literatura. A princípio voltado para as obras de Shakespeare; mas depois: quem sabe?
O texto de hoje é sobre referências mitológicas e a tragédia Hamlet. Já tenho outro texto do Mário em mãos que vai aparecer algum outro dia dessa semana; aguardem. Enquanto isso, nos encontramos nos comentários.
Referências Mitológicas em Hamlet, de Shakespeare
Mário Amora Ramos
Há sempre muito a aprender com as tragédias, comédias, dramas históricos e sonetos de Shakespeare, também autor de alguns poemas.
As referências mitológicas da tragédia de Hamlet, relacionadas a seguir, acompanhadas das principais localizações na obra original, são um bom exemplo do tesouro que é sua obra:
Apolo representa o Sol nas mitologias grega e romana. É a ele que Horácio se refere quando diz que “o galo […] acordou o deus do dia” (the cock […] awake the god of day) (1.1).
Um dos sonetos do Prólogo do primeiro livro de Dom Quixote, de Cervantes, diz que sua fama durará enquanto “o louro Apolo fustigar seus cavalos” (sus caballos aguije el rubio Apolo), numa bela metáfora dos dias que correm. Há uma outra passagem na qual Dom Quixote se queixava de que o dia demorava a passar “parecendo-lhe que se tinham quebrado as rodas do carro de Apolo” (pareciéndole que las ruedas del carro de Apolo se habían quebrado) [Dom Quixote, livro 2, cap. 71].
Cavalo de Tróia (Trojan horse) era um cavalo de madeira, presente dos gregos, mas na verdade carregado de soldados, para atacarem os troianos. Hamlet, em conversa com os atores contratados, na peça encenada dentro da peça, refere-se ao “corcel sinistro” (ominous horse) (2.2), onde se escondeu o guerreiro Pirro.
Ciclopes (Cyclops) eram três gigantes que habitavam a Sicília, segundo a Odisséia, de Homero. Tinham um só olho circular no meio da testa, conforme mostra a etimologia grega da palavra: kyklos, círculo, e ops, olho. Um dos atores contratados, ao recitar para Hamlet, refere-se aos “martelos dos Ciclopes” (Cyclops’ hammers) (2.2), simbolizando a violência do grego Pirro contra o rei Príamo. Os ciclopes eram ajudantes de Vulcano e com seus poderosos golpes ajudaram a forjar as flechas de Júpiter, o tridente de Netuno e o carro de Febo. Há abaixo verbetes específicos para Febo, Júpiter, Netuno e Vulcano.
Dâmon e Pítias (Damon and Pythias), na mitologia romana, eram amigos. Pítias foi condenado à morte, por tramar contra o rei Dionísio de Siracusa, e precisava de tempo para organizar seus negócios. Dâmon ficou no lugar do amigo, oferecendo sua vida como garantia do retorno de Pítias. Finalmente, Pítias retornou e foi perdoado. Hamlet compara o amigo Horácio a Dâmon (3.2).
Dido (Dido), apesar do nome masculino, é mulher. Na Eneida, de Virgílio, ela se apaixona por Enéias, o herói da guerra de Tróia, e se mata quando ele a deixa. Hamlet se refere a ela, de passagem, em conversa com um dos atores contratados (2.2).
Enéias (Aeneas) V. Dido.
Febo (Phoebus), na mitologia grega, é um outro nome de Apolo, o deus do sol. O ator que interpreta o rei, na peça encenada dentro da peça, diz que “o carro de Febo deu trinta voltas completas” (Full thirty times hath Phoebus’ cart gone round) (3.2). Estas trinta voltas completas equivalem a trinta anos, como o personagem explica mais adiante com a expressão “thirty dozen moons”, isto é, trinta dúzias de luas. O mês lunar (intervalo entre duas luas novas consecutivas) é de 29,5 dias; assim, “doze luas” servem como uma boa aproximação para “doze meses”. Em resumo, o ator quer dizer que trinta anos se passaram.
Hécate (Hecate), na mitologia grega, é a deusa da feitiçaria. O ator que interpreta Luciano, na peça encenada dentro da peça, refere-se a Hécate ao envenenar o rei adormecido (3.2). Hécate e três feiticeiras, que moram numa caverna, são personagens de Macbeth. Todas as suas profecias se cumprem, para infortúnio do personagem principal.
Hécuba (Hecuba), na Ilíada, de Homero, é a esposa do rei Príamo, morto pelo guerreiro grego Pirro na guerra de Tróia. Um dos atores contratados, ao recitar para Hamlet, refere-se à dor de Hécuba, que comoveria os próprios deuses, “a menos que as coisas mortais não os afetem” (Unless things mortal move them not at all) (2.2). No quarto solilóquio, no fim da mesma cena, Hamlet menciona os infortúnios de Hécuba. Hamlet tem um especial interesse neste trecho, pelo contraste que oferece entre o desespero de Hécuba com a morte do marido e a frivolidade da mãe, casando-se pouco depois de viúva. Embora não seja personagem da peça, Hécuba é também mencionada na tragédia Tróilo e Créssida, de Shakespeare.
Hércules (Hercules) é um personagem da mitologia grega famoso por sua força extraordinária e seus Doze Trabalhos. Hamlet diz que “o tio se parece tanto com o pai quanto ele (Hamlet) com Hércules” (My father’s brother: but no more like my father, than I to Hercules) (1.2). Rosencrantz se refere a “Hércules carregando o mundo” (Hercules and his load) (2.2): talvez um antecessor do marketing no teatro, já que Hércules era o símbolo do teatro Globe. Hamlet cita novamente Hércules, neste par de decassílabos, ao discutir com Laertes no enterro de Ofélia: “Hércules pode fazer o que quiser;/ o gato miará e o cão terá seu dia” (Let Hercules himself do what he may,/ The cat will mew, and dog will have his day) (5.1).
Himeneu (Hymen) é o deus grego do casamento. Hymen, em grego, significa membrana, sendo a origem do vocábulo “hímen”. O ator que faz o papel de rei, na peça encenada dentro da peça, diz que “o himeneu uniu nossa mãos” (Hymen did our hands unite) (3.2).
Hipérion (Hyperion), na mitologia grega, pode referir-se tanto ao pai do deus do sol (Hélio), como ao próprio deus do sol, como nesta passagem, na qual Hamlet fala do falecido pai: “um rei tão excelente que, em comparação com este, é como confrontar Hipérion com um sátiro” (So excellent a King, that was to this Hyperion to a satyr) (1.2).
Hamlet, ao mostrar à rainha os retratos do pai e do tio, compara os cabelos louros do pai aos “cachos de Hipérion” (Hyperion’s curls) (3.4).
Ílio (Illium) é o nome poético de Tróia, do qual deriva o nome Ilíada, o poema épico de Homero, que narra a guerra dos gregos contra Tróia. Um dos atores contratados de refere a ela de passagem (2.2).
Júpiter (Jove), na mitologia romana, é o deus supremo, senhor dos raios e das chuvas. Hamlet, ao mostrar à rainha os retratos do pai e do tio, compara o pai à “fronte do próprio Júpiter” (the front of Jove himself) (3.4).
Lete (Lethe) é um dos rios do Hades, o inferno da mitologia grega. Seu nome, em grego, significa esquecimento: quem bebe de sua água se esquece de sua vida passada. O fantasma do pai de Hamlet se refere às suas margens (1.5).
Marte (Mars) é o deus da guerra, na mitologia romana. Hamlet, ao mostrar à rainha os retratos do pai e do tio, diz que o pai tem “um olhar como o de Marte, para ameaçar ou comandar” (an eye like Mars, to threaten or command) (3.4). Há também uma breve referência à armadura de Marte (on Mars his armours) (2.2) usada pelo guerreiro Pirro, numa fala recitada por um dos atores, a pedido do príncipe.
Mercúrio (Mercury), na mitologia romana, era o mensageiro dos deuses e o deus do comércio. Hamlet, ao mostrar à rainha os retratos do pai e do tio, diz que o pai tem “um porte como o do arauto Mercúrio” (a station like the herald Mercury) (3.4).
Neméia (Nemea) era um vale perto de Argos, na Grécia antiga. Matar o leão da Neméia foi o primeiro dos Doze Trabalhos de Hércules, encomendados por Euristeu, rei de Argos. No seu primeiro encontro com a fantasma do pai, Hamlet compara seu estado de tensão à rigidez dos músculos do “leão da Nemeia” (Nemean lion) (1.4).
Netuno (Neptune), na mitologia romana, é o deus do mar. Seu equivalente grego é Poseidon. Horácio se refere ao “astro úmido, sob cuja influência está o império de Netuno” (the moist star, upon whose influence Neptune’s empire stands) (1.1). O “astro úmido” é a Lua, que na astronomia daquele tempo era o corpo celeste responsável pela umidade (moisture). A influência sobre o império de Netuno pode referir-se também às marés, que são afetadas pela atração exercida pela Lua.
O ator que faz o papel de rei, na peça encenada dentro da peça, menciona “Neptune’s salt wash” (3.2), isto é, as “ondas salgadas de Netuno”.
Ninfas (Nymphs), nas mitologias grega e romana, eram belas jovens que viviam nos bosques. É desta forma galante que Hamlet se dirige a Ofélia, quando esta entra em cena no fim do quinto solilóquio: “Ninfa, que em suas orações sejam lembrados os meus pecados” (Nymph, in thy orisons/ Be all my sins remembered) (3.1).
Niobe (Niobe), a rainha de Tebas, na mitologia grega, foi castigada com a morte de seus sete filhos e sete filhas. Ela chorava continuamente, mesmo após ser transformada em pedra por Zeus. Hamlet compara a mãe viúva a “Niobe em pranto” (Niobe, all tears) (1.2).
Olimpo (Olympus) é o nome do monte onde moram os doze principais deuses da mitologia grega, na porção norte da Tessália. V. Pélion.
Ossa (Ossa), na mitologia grega, é o nome de um monte. Hamlet, no enterro de Ofélia, diz a Laertes que deixe que as montanhas caiam sobre eles “até que o Ossa pareça uma verruga” (make Ossa like a wart) (5.1). V. Pélion.
Pélion (Pelion), na mitologia grega, é o nome de um monte. Quando os titãs lutaram contra os deuses, tentaram alcançar o Olimpo empilhando o monte Pélion sobre o monte Ossa, mas foram esmagados pelas ruínas de ambos os montes. Laertes, no enterro da irmã, refere-se ao “velho Pélion” (old Pelion) e ao “Olimpo azul” (blue Olympus) (5.1).
Pirro (Pyrrhus), um guerreiro grego, matou Príamo, rei de Tróia. Hamlet refere-se a ele, ao pedir a um dos atores contratados que recite um trecho de uma peça. Diz o príncipe: “Ela começa com Pirro” (It begins with Pyrrhus) (2.2). Hamlet provavelmente se interessa por esta passagem por retratar a dor da viúva Hécuba (V. acima) e porque Pirro também perdeu o pai, Aquiles, morto por Páris (filho de Príamo) com uma flechada no calcanhar, seu único ponto vulnerável.
Príamo (Priam) era rei de Tróia e marido de Hécuba. Um de seus filhos, Páris, raptou a bela Helena, filha de Menelau, rei de Esparta, iniciando a guerra de Tróia. Ele é também personagem da tragédia Tróilo e Créssida, de Shakespeare. V. Hécuba e Pirro.
Sátiros (Satyrs), na mitologia grega, eram assistentes de Dioniso, o deus do vinho (Baco, para os romanos). Os sátiros tinham orelhas pontudas, chifres curtos, cabeça e corpo de homem e pernas de cabra. Hamlet compara o rei Cláudio a um sátiro (V. Hipérion).
Telos (Tellus), na mitologia romana, é a deusa da terra. Daí deriva o adjetivo “telúrico”, relativo à Terra ou ao solo. O ator que faz o papel de rei, na peça encenada dentro da peça, menciona “a região orbital de Telos” (Tellus’ orbed ground) (3.2).
Termagante (Termagant) é uma deidade imaginária que os cristãos medievais atribuíam ao mundo muçulmano. É um símbolo da violência desmesurada, citado por Hamlet em sua instrução aos atores: “Eu mandaria açoitar um sujeito que exagerasse o papel de Termagante; isto equivale a ser mais Herodes do que o próprio Herodes: eu peço que evitem isso” (I could have such a fellow whipt for o’er-doing Termagant; it out-herod’s Herod: pray you, avoid it) (3.2).
Vulcano (Vulcan), na mitologia romana, é ferreiros dos deuses. Hamlet, quando pede a Horácio para observar as reações do rei, na peça representada dentro da peça, diz ao amigo Horácio que suas suspeitas são “tão negras quanto a forja de Vulcano” (as foul/ As Vulcan’s stithy) (3.2). Seu equivalente grego é Hefesto.
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