Criaturas

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

Quimera, Sagitário, Sátiros, Sileno e Silvanos

Mário Amora Ramos

Quimera foi um monstro da mitologia grega, morto por Belerofonte, com a ajuda de Pégaso, o cavalo alado. A quimera lançava fogo pelas narinas e tinha cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente. Ela aparece como sinônimo de criatura fantástica na Canção de Crisóstomo, nestes versos:

“E o porteiro infernal dos três rostos,

Com outras mil quimeras e mil monstros”

(Y el portero infernal de los tres rostros,

con otras mil quimeras y mil monstros,) [I, XIV]

O “porteiro infernal dos três rostos” é Cérbero, um cão de três cabeças, guardião do inferno, para o qual há um verbete específico.

A quimera aparece diversas vezes no texto de Dom Quixote, como neste exemplo, no sentido de sonho, fantasia ou acontecimento fantástico:

“Ali Dom Quijote estava atento, sem proferir palavra, considerando estes tão estranhos acontecimentos, atribuindo-os todos a quimeras da cavalaria andante.”

(Allí don Quijote estaba atento, sin hablar palabra, considerando estos tan estraños sucesos, atribuyéndolos todos a quimeras de la andante caballería.) [I, XLII]

Sagitário é um centauro (meio homem, meio cavalo) que dispara seu arco. A palavra deriva do latim sagitta (flecha). Sancho Pança, em conversa com seu amigo Ricote, contou que governara a ilha Baratária “como um sagitário” (como un sagitario) [II, LIV], talvez se referindo à rapidez com que um sagitário dispara suas flechas.

Sátiros, na mitologia grega, eram assistentes de Dioniso, o deus do vinho (Baco, para os romanos). Os sátiros tinham orelhas pontudas, chifres curtos, cabeça e corpo de homem e pernas de cabra. Foram citados por Dom Quixote em sua penitência na Serra Morena:

“Ó vós outras, napeias e dríades, que usais habitar no mais cerrado dos montes, assim os ligeiros e lascivos sátiros de quem sois amadas, posto que em vão, não perturbem jamais o vosso doce sossego; ajudai-me a deplorar a minha desventura, ou pelo menos não vos canseis de ma ouvir!”

(¡Oh vosotras, napeas y dríadas, que tenéis por costumbre de habitar en las espesuras de los montes, así los ligeros y lascivos sátiros, de quien sois, aunque en vano, amadas, no perturben jamás vuestro dulce sosiego, que me ayudéis a lamentar mi desventura, o, a lo menos, no os canséis de oílla!) [I, XXV].

Sileno era o líder dos sátiros e tutor de Dioniso. Dom Quixote se refere a ele como “aquele bom velho Sileno, aio e pedagogo do alegre deus do riso” (aquel buen viejo Sileno, ayo y pedagogo del alegre dios de la risa) [I, XV].

Silvanos, na mitologia romana, eram as divindades masculinas do bosque (em latim, silva). Eles correspondem aos sátiros, da mitologia grega. Foram citados por Dom Quixote em sua penitência na Serra Morena [I, XXVI].

Passagens

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

 

Cérbero, Cila e Caríbdis e Circe

Mário Amora Ramos

Cérbero era o cão de três cabeças que guardava as portas do Hades, o mundo infernal da mitologia grega. Só sombras ou espíritos podiam entrar no Hades. No entanto, três personagens conseguiram subjugar Cérbero:

O primeiro foi Orfeu, que encantou Cérbero com sua música, e ele o deixou sair com sua mulher, Eurídice.

O segundo foi Hércules, que apertou Cérbero com tanta força que ele se tornou dócil e Hércules o levou para a Micenas, para que o rei Euristeu o visse. O rei ficou tão atemorizado que imediatamente enviou Hércules de volta com o monstro.

O terceiro foi uma sibila, que conduziu Eneias, o guerreiro troiano, ao mundo inferior para conhecer o futuro de Roma. Conta a lenda que a sibila deu-lhe um pastel e Cérbero adormeceu.

Na Canção de Crisóstomo há uma referência implícita a Cérbero, “o porteiro infernal dos três rostos” (el portero infernal de los tres rostros) (I, XIV).

Cila e Caríbdis são dois monstros femininos da mitologia grega. Cila é também um rochedo perigoso para a navegação, situado no Estreito de Messina. Caríbdis é um redemoinho, situado no lado oposto, na costa da Sicília. A expressão “estar entre Cila e Caríbdis”, portanto, é estar entre o fogo e a frigideira, isto é, estar entre dois perigos. Os Argonautas, Ulisses e Eneias tiveram de navegar por esta passagem perigosa, o que conseguiram graças à proteção dos deuses.

Dom Quixote, no seu discurso sobre as dificuldades enfrentadas pelo estudante de letras humanas, chamou-as de “estas Cilas e Caríbdis” (estas Scilas y Caribdis) [I, XXXVII].

Circe é personagem da Odisseia de Homero. Seu personagem principal é Ulisses (Odisseus, em grego), rei de Ítaca, que tenta regressar a seu país depois da Guerra de Troia. Esta, por sua vez, é narrada por Homero na Ilíada (cujo nome deriva de Ilios, o equivalente grego de Troia).

Circe, na mitologia grega, era uma bela feiticeira que tinha o poder de transformar homens em animais. Quando Ulisses aportou em sua ilha, no Mediterrâneo, Circe transformou a maioria de seus homens em porcos e os levou a um chiqueiro. O deus Hermes, porém, tinha dado a Ulisses uma erva mágica para protegê-lo dos poderes de Circe e Ulisses forçou-a a devolver a forma humana a seus homens. Quando se preparavam para partir, Circe ensinou a Ulisses a tampar os ouvidos de seus marinheiros com cera para passar pela ilha onde moravam as sereias.

Ela é citada de passagem no Prólogo do Primeiro Livro: “Se (falarem) de encantadoras e feiticeiras, Homero tem Calipso e Virgílio tem Circe” (si de encantadores y hechiceras, Homero tiene a Calipso, y Virgilio a Circe). Esta é a única referência a Calipso e Circe em toda a obra. Virgílio também escreveu sobre a Guerra de Troia, na Eneida, que descreve as aventuras de Eneias, o herói troiano que sobreviveu à guerra, navegou para a Itália e fundou Roma. Por um pequeno cochilo, Cervantes atribui a feiticeira Circe apenas a Virgílio, mas ela também é personagem da Odisseia de Homero.