Amores Perdidos

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

Penélope, Perseu, Píramo e Tisbe, Plêiades e Polifemo

Mário Amora Ramos

Penélope era a fiel esposa de Ulisses, também chamado Odisseu, o herói da Odisseia, de Homero. Ela aguardou seu retorno por vinte anos, tecendo uma teia interminável, que tecia pela manhã e desfazia à noite. Na Novela do Curioso Impertinente, Camila é comparada a uma “nova e perseguida Penélope” (nueva y perseguida Penélope) [I, XXXIV].

Perseu matou a Medusa, a única mortal das três irmãs chamadas Górgonas. Medusa gabou-se de sua beleza para a deusa Atena, que ficou com inveja e transformou-a num ser horrendo, com cobras vivas no lugar de cabelos. Eram tão feias que quem as olhava se transformava em pedra. Perseu usou um escudo polido como um espelho para olhá-la indiretamente.

Dom Quixote se refere equivocadamente a Perseu nesta instrução a Sancho Panza, em sua aventura na Serra Morena:

“Mas o melhor será, para não te perderes, que cortes alguns ramos dos muitos que há por aqui e os vás pondo de trecho em trecho, até saíres no raso, os quais servirão de marcos e sinais para que me aches na volta, como uma imitação do fio do labirinto de Perseu”

(Cuanto más, que lo más acertado será, para que no me yerres y te pierdas, que cortes algunas retamas de las muchas que por aquí hay y las vayas poniendo de trecho a trecho, hasta salir a lo raso, las cuales te servirán de mojones y señales para que me halles cuando vuelvas, a imitación del hilo del laberinto de Perseo) [I, XXV].

Como bem observa Martín de Riquer em seus comentários, “foi Teseu e não Perseu quem saiu do labirinto de Creta” (Fue Teseo, y no Perseo, quien acertó a salir del laberinto de Creta).

Teseu foi mencionado no verbete referente a Ariadne, que se apaixonou por ele e lhe deu uma espada e um novelo de linha, para guiá-lo de volta do labirinto do Minotauro.

Píramo e Tisbe namoravam às escondidas, já que suas famílias eram rivais. Um dia, Píramo encontrou uma veste ensanguentada de Tisbe e achou que ela tinha sido morta por uma leoa. Ele se matou e Tisbe, encontrando seu corpo, se suicidou. Dom Lourenço recitou um soneto sobre o infeliz casal [II, XLIII]. Um estudante comparou o namoro de Basílio e Quitéria aos “já olvidados amores de Píramo e Tisbe” (los ya olvidados amores de Píramo y Tisbe) [II, XIX].

Píramo e Tisbe inspiraram Shakespeare na tragédia de Romeu e Julieta, os amantes de Verona.

Plêiades são as sete filhas de Atlas e da ninfa Plêione, transformadas por Zeus primeiramente em cabras e depois em estrelas (constelação das Plêiades). Após o voo em Clavilenho, Sancho contou que, no céu, “me diverti com as cabrinhas” (me entretuve con las cabrillas) [II, XLI].

O substantivo “plêiade” hoje simboliza uma reunião de sete pessoas ilustres ou, por extensão, um grupo de literatos.

Polifemo era um dos Ciclopes, três gigantes que habitavam a Sicília, segundo a Odisséia, de Homero. Tinham um só olho circular no meio da testa, conforme mostra a etimologia grega da palavra: kyklos, círculo, e ops, olho. Polifemo aprisionou Ulisses e seus companheiros numa caverna. Para escapar, Ulisses cegou Polifemo. O gigante é mencionado num dos trotes dos duques [II, LXVIII].


Olha eu dando palpite no texto dos outros (desculpem a intromissão). Eu só queria lembrar que Píramo e Tisbe aparecem na comédia Sonho de Uma Noite de Verão, de Shakespeare.

Também queria deixar um verso sobre Penélope: Como chorar em cima do cadáver inexistente de um amor?

Quando Ninguém o Ataca

“Passara de um sonho ruim (no qual um guerreiro, absolutamente insignificante em tamanho, mas provido de uma espada afiada e grande coragem, figurava da maneira mais desagradável) para um cochilo, e do cochilo para o completo despertar.” O Hobbit, Tolkien.

O que fazer quando seu adversário é reconhecidamente mais poderoso que você? Recolher-se a sua insignificância. Afinal, quem tem medo de ninguém? Nosso querido hobbit, Bilbo Bolseiro, deve ter tirado algumas dicas da Odisseia de Homero.

A Odisseia narra a volta do herói Odisseus para sua casa na Ilha de Ítaca após a Guerra de Troia. Sua viagem teria sido muito mais rápida e fácil se ele não tivesse medido seu valor com o do ciclope Polifemo (filho de Poseidon). A parada na ilha do Ciclope foi uma das primeiras na jornada de nosso herói. A tripulação, cansada e faminta, atacou os mantimentos do ciclope. Como castigo, Polifemo prendeu Odisseus e a tripulação em sua caverna e ia os devorando pouco a pouco.

Ora, o herói da Odisseia é conhecido por sua astúcia ao invés de sua força. De nada adiantaria lutar contra Polifemo; a solução era enganá-lo. Para começar, Odisseus proclamou que seu nome era Ninguém. Depois, Ninguém e sua tripulação conseguiram cegar o único olho do ciclope. Cego e desesperado, Polifemo abriu a porta da própria caverna e tateava suas ovelhas e tudo ao redor tentando capturar os marinheiros que não mais enxergava. Porém, Odisseus tinha amarrado seus homens na barriga das ovelhas e o ciclope não os conseguia tatear ao tocar os dorsos de seu rebanho. Nenhum dos outros ciclopes da ilha vinha ajudar Polifemo pois este gritava: “Ninguém me cegou! Ninguém me atacou!”

Tudo teria ido bem para Odisseus, e ele teria escapado da vingança do deus do mar, se ele não tivesse gritado sua identidade para que Polifemo soubesse quem o tinha vencido na esperteza. Nosso herói achou que já estava a salvo do perigo por estar de volta em seu barco. Mal sabia ele que o mar seria seu maior inimigo.

Enquanto isso no Condato, o pequeno Bilbo Bolseiro era escolhido para ser o ladrão de uma companhia de anões que queria reaver seu tesouro roubado por um dragão. Toda a empreitada teria ido por água abaixo (com o perdão do trocadilho), se não fosse pela capacidade do senhor Bolseiro de saber seu tamanho em relação a Smaug, o Magnífico.

Bilbo seguiu o exemplo do herói grego e se aproveitou do fato de os hobbits serem uma espécie totalmente desconhecida dos dragões. O hobbit se esconde num jogo de adivinhas para ser conhecido pelo dragão apenas como “O Ladrão nas Sombras”.

Novamente, a falha no plano é quando uma identidade é revelada. Smaug nunca fica sabendo quem ou o que é o Sr. Bolseiro. Mas as pistas deixadas pelo hobbit o remetem aos Homens do Lago e aos gananciosos anões liderados por Thorin, Escudo de Carvalho. Assim é despertada a fúria do dragão.

“Essa, naturalmente, é a forma de conversar com dragões. se não queremos revelar nosso próprio nome (o que é sensato), e não queremos  enraivecê-lo com uma recusa direta (o que também é muito sensato). Nenhum dragão resiste à fascinação de conversar por enigmas e de perder tempo tentando entendê-los”. O Hobbit, Tolkien.

Nesse grande jogo de gato-e-rato, os heróis ganham ares de vilões ao fazer da trapaça sua melhor aliada. No entanto, cometem sua hamartia (a falha trágica) ao acharem que seus nomes e seus títulos os perdoariam de toda e qualquer vilania.

Sábio mesmo é o lema de Hogwarts: “Draco Dormiëns Nunquam Titillandus” (Nunca Faça Cosquinhas em um Dragão Adormecido).

Passagens

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

 

Cérbero, Cila e Caríbdis e Circe

Mário Amora Ramos

Cérbero era o cão de três cabeças que guardava as portas do Hades, o mundo infernal da mitologia grega. Só sombras ou espíritos podiam entrar no Hades. No entanto, três personagens conseguiram subjugar Cérbero:

O primeiro foi Orfeu, que encantou Cérbero com sua música, e ele o deixou sair com sua mulher, Eurídice.

O segundo foi Hércules, que apertou Cérbero com tanta força que ele se tornou dócil e Hércules o levou para a Micenas, para que o rei Euristeu o visse. O rei ficou tão atemorizado que imediatamente enviou Hércules de volta com o monstro.

O terceiro foi uma sibila, que conduziu Eneias, o guerreiro troiano, ao mundo inferior para conhecer o futuro de Roma. Conta a lenda que a sibila deu-lhe um pastel e Cérbero adormeceu.

Na Canção de Crisóstomo há uma referência implícita a Cérbero, “o porteiro infernal dos três rostos” (el portero infernal de los tres rostros) (I, XIV).

Cila e Caríbdis são dois monstros femininos da mitologia grega. Cila é também um rochedo perigoso para a navegação, situado no Estreito de Messina. Caríbdis é um redemoinho, situado no lado oposto, na costa da Sicília. A expressão “estar entre Cila e Caríbdis”, portanto, é estar entre o fogo e a frigideira, isto é, estar entre dois perigos. Os Argonautas, Ulisses e Eneias tiveram de navegar por esta passagem perigosa, o que conseguiram graças à proteção dos deuses.

Dom Quixote, no seu discurso sobre as dificuldades enfrentadas pelo estudante de letras humanas, chamou-as de “estas Cilas e Caríbdis” (estas Scilas y Caribdis) [I, XXXVII].

Circe é personagem da Odisseia de Homero. Seu personagem principal é Ulisses (Odisseus, em grego), rei de Ítaca, que tenta regressar a seu país depois da Guerra de Troia. Esta, por sua vez, é narrada por Homero na Ilíada (cujo nome deriva de Ilios, o equivalente grego de Troia).

Circe, na mitologia grega, era uma bela feiticeira que tinha o poder de transformar homens em animais. Quando Ulisses aportou em sua ilha, no Mediterrâneo, Circe transformou a maioria de seus homens em porcos e os levou a um chiqueiro. O deus Hermes, porém, tinha dado a Ulisses uma erva mágica para protegê-lo dos poderes de Circe e Ulisses forçou-a a devolver a forma humana a seus homens. Quando se preparavam para partir, Circe ensinou a Ulisses a tampar os ouvidos de seus marinheiros com cera para passar pela ilha onde moravam as sereias.

Ela é citada de passagem no Prólogo do Primeiro Livro: “Se (falarem) de encantadoras e feiticeiras, Homero tem Calipso e Virgílio tem Circe” (si de encantadores y hechiceras, Homero tiene a Calipso, y Virgilio a Circe). Esta é a única referência a Calipso e Circe em toda a obra. Virgílio também escreveu sobre a Guerra de Troia, na Eneida, que descreve as aventuras de Eneias, o herói troiano que sobreviveu à guerra, navegou para a Itália e fundou Roma. Por um pequeno cochilo, Cervantes atribui a feiticeira Circe apenas a Virgílio, mas ela também é personagem da Odisseia de Homero.

Nos Braços de Calipso

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

 

Caco e Calipso

Mário Amora Ramos

Caco é um ladrão na mitologia grega. Ele é citado de passagem no Prólogo do Primeiro Livro: “Se tratardes de ladrões, contar-vos-ei a história de Caco, que sei de cor” (Si tratáredes de ladrones, yo os diré la historia de Caco, que la sé de coro).

O dono de uma hospedaria é considerado “não menos ladrão que Caco” (no menos ladrón que Caco) [I, II]

Num comentário sobre o livro “Espelho de Cavalarias” (Espejo de Caballerías), obra de Melchor Ortega, publicada em Valladolid, em 1556, há esta observação do cura:

“Aí anda o senhor Reinaldo de Montalbán com os seus amigos e companheiros, mais ladrões que Caco” (Ahí anda el señor Reinaldos de Montalbán con sus amigos y compañeros, más ladrones que Caco) [I, VI].

A expressão “mais ladrão que Caco” (más ladrón que Caco) [II, XLIX] aparece também em referência a um jogador de cartas, na ilha onde Sancho se tornou governador.

Calipso é personagem da Odisseia de Homero, composta por volta do século VI antes de Cristo. Seu personagem principal é Ulisses (Odisseus, em grego), rei de Ítaca, que tenta regressar a seu país depois da Guerra de Troia. Esta, por sua vez, é narrada por Homero na Ilíada (cujo nome deriva de Ilios, o equivalente grego de Troia).

Calipso era uma ninfa do mar que reteve Ulisses em sua ilha por sete anos, retardando seu retorno a Ítaca, na Odisseia, de Homero. Calipso lhe prometeu que ele seria imortal se ficasse ali com ela, até que Zeus lhe enviou o mensageiro Hermes com uma ordem para que deixasse Ulisses ir embora. Obediente, Calipso ajudou Ulisses a construir uma jangada para sair de sua ilha.

Ela é citado de passagem no Prólogo do Primeiro Livro: “Se (falarem) de encantadoras e feiticeiras, Homero tem Calipso e Virgílio tem Circe” (si de encantadores y hechiceras, Homero tiene a Calipso, y Virgilio a Circe). Esta é a única referência a Calipso e Circe em toda a obra. Virgílio também escreveu sobre a Guerra de Troia, na Eneida, que descreve as aventuras de Eneias, o herói troiano que sobreviveu à guerra, navegou para a Itália e fundou Roma. Por um pequeno cochilo, Cervantes atribui a feiticeira Circe apenas a Virgílio, mas ela também é personagem da Odisseia de Homero.

Para não fugir à ordem alfabética, o leitor encontrará, num futuro artigo, um verbete dedicado a Circe, que transformou os companheiros de Ulisses em porcos e os conduziu a um chiqueiro.

Ulisses resistiu bravamente aos encantos e promessas de Calipso e Circe e retornou à sua Penélope, que permaneceu fiel a ele ao longo dos vinte anos de sua ausência

O próximo artigo iniciará com os Campos Elísios, a morada das pessoas virtuosas após a morte, na mitologia grega.

 


 

Uma pequena música de Adriana Calcanhoto falando sobre Odisseus e Calipso: