Gênios e Musas

As mãos frenéticas atacavam o papel. O momento era inoportuno, mas foi a hora em que apareceu a inspiração e ela deveria ser posta no papel. Caso contrário, algo estaria perdido. E tinha certeza de que era algo importante demais para simplesmente desaparecer.

Eu sempre acreditei em momentos de inspiração, em algo que você só pode criar no momento certo; quase como as musas gregas. Por isso, sempre me perturbou tanto ter que escrever com prazos, e pior, com assuntos pré-definidos em uma forma fechada. É algo do tipo: “eu sei que eu posso fazer melhor, mas não agora”.

Pessoas que trabalham com criatividade tendem a ser pessoas mais sensíveis e, por isso, mais suscetíveis a se transtornar com questões que para os outros podem parecer básicas. Não são raros os casos de artistas que enlouquecem, se deprimem, desperdiçam a vida com álcool e drogas ou todas as alternativas anteriores. Como também são inúmeros os livros falando sobre como é difícil escrever ou os filmes e peças sobre como é dura a vida de um ator.

Se você criou algo “com alma” significa que seus sentimentos estão emaranhados ali no meio. Você coloca no trabalho seus problemas e tormentos da vida pessoal. Ou melhor, você transforma em trabalho aquilo que te perturba o tempo inteiro. Uma amiga sempre cita a frase: “Escrever é dançar pelado no telhado”. Nunca soube a autoria da frase, mas sempre gostei dela.

Outra coisa que eu sempre ouvi é que se deve escrever sobre o que se sabe. Essa me é mais intrigante: se eu for escrever sobre o que eu vivi o livro não vai ficar absurdamente chato? Quantas pessoas realmente tem uma história incrível que mereça ser contada? E os grandes livros de fantasia? J.K. Rowling então é uma bruxa para ter escrito Harry Potter?

Minhas visões sobre essa última parte vieram mudando com o tempo. Mesmo que você tenha uma imaginação incrível, o centro da sua história vem de algo muito pessoal. Voltando ao Harry Potter, a grande jornada do menino é para validar o sacrifício dos pais; é lutar pelo que existe de bom no mundo. O resto é a forma como isso foi transmitido. J.K. tinha perdido a mãe quando escreveu o primeiro livro. Ela sabia o que era o sentimento de querer deixar orgulhosa a mãe que já tinha partido.

Escrever é minha válvula de escape; como se a criatividade estivesse presa dentro de mim e enquanto ela não for liberada eu não posso me ocupar com mais nada. Eu até tenho a sensação de que as histórias são serezinhos que moram na minha cabeça e que quando começam a pular dizendo: “Me escreve! Me escreve!”; eles não calam a boca até eu escrever

Queria era falar da visão sobre criatividade que Elizabeth Gilbert (de Comer, Rezar e Amar) tem sobre criatividade. Eu primeiro entrei em contato com isso em uma palestra do TED. Mas agora, a autora desenvolve o tema mais a fundo em seu novo livro “Grande Magia”.

Na palestra, ela fala sobre as diferenças entre ser um gênio e ter um gênio. Ela conta que agora todo mundo pergunta se ela não tem medo de nunca mais escrever algo que seja tão bom ou que faça tanto sucesso quanto o best-seller dela. Então, ela se lembra de que quando dizia que queria ser escritora todo mundo perguntava se ela não tinha medo de nunca conseguir escrever nada bom ou que fizesse sucesso .

A resposta dela é: “sim, eu tenho medo”. E ela aponta que todos temos; todos podemos nunca ter sucesso na profissão ou que os nossos maiores feitos tenham já tenham ocorrido. Porém, isso parece pesar de forma mais forte nas mentes criativas.

Um conceito que mudou com o tempo foi a forma de olhar essa criatividade. Na antiguidade, a obra genial era feita pelo artista mas conduzida por uma força sobrenatural; ou seja, seu sucesso ou fracasso dependia do sobrenatural e não de você, pobre mortal. Entretanto, quando chega o Iluminismo o homem passa a tomar o destaque no processo: tudo agora está nas mãos do artista que é ou não é um gênio.

No livro, ela deixa de lado qualquer receio de parecer hippie e diz que continua acreditando que criatividade seja algo que vem de fora, uma força sobrenatural e exterior ao artista.“Que a inspiração chegue não depende de mim. A única coisa que posso fazer é garantir que ela me encontre trabalhando.” Pablo Picasso.

Independente de sua visão pessoal sobre as origens da criatividade, “Grande Magia” é um convite a uma vida mais plena. Uma vida mais em contato com qualquer que seja a forma que você tenha de expressar sua criatividade. Uma vida em que haja mais expressão. Com isso, vem o contato com sua vida interior, as questões que mais te apavoram e que tornam a existência na Terra algo maior.

Minha visões sobre criatividade mudam com o tempo, mas o fascínio sobre ela é uma constante. Cada vez mais acredito na arte como terapia; como um bálsamo para a alma. A arte mostra o que queremos esconder e faz com que tenhamos que brincar com nossos monstros. Aprendi a escrever personagens com meus defeitos (os piores). Moldo os personagens e faço sua jornada ser sobre consertar suas características negativas. Me moldo e me modifico com eles. Libero pela criatividade tudo o que bloqueia o meu caminho. A critividade é minha válvula de escape: enquanto ela está funcionando (e não presa dentro de mim), consigo ir resolvendo os outros problemas da vida real.

 

 

 

Para ir além:

http://www.elizabethgilbert.com/thoughts-on-writing/

Mais textos do Baú – Cinema e Literatura

Essa foi uma postagem de 2008 em um blog que já morreu


As Duas Esmeraldas

Essa semana circunstâncias um tanto quanto conturbadas, que eu não vou entrar em detalhes, me levaram a assistir o filme Dogville. O filme não faz nem um pouco meu estilo, mas me levou numa reflexão relacionada a uma obra-prima pela qual eu me apaixonei esse ano: O Corcunda de Notre Dame. O resultado dessa reflexão é o que eu vou tentar transcrever abaixo.

Em ambas as obras o que me chamou a atenção foi a figura feminina: Grace e Esmeralda. As duas são estrangeiras que chegam em comunidades fechadas e tradicionais. Essas comunidades estão totalmente lascadas por dentro das suas estruturas, mas no exterior convivem pacificamente, vivendo numa superfície sem transparecer os conflitos. A chegada de alguém diferente traz à tona todos os problemas. Em um primeiro momento, as duas causam paixões, atração e uma certa forma de amor. No entanto, com o convívio, as sociedades vêem nelas ameaça. No caso de Grace, a ameaça é dos gangsteres que a procuram. Esmeralda, por sua vez, é acusada pelo lado religioso, por compactuar com as forças ocultas. Essas ameaças são apenas um desvio do que elas realmente representam: uma espécie de espelho ao avesso, no qual as sociedades entram em confronto com elas mesmas e enxergam seus defeitos dos quais elas estavam tão orgulhosas em esconder (até delas mesmas).

O que isso mostra é o medo do diferente. O diferente que atrai pela novidade, a surpresa, a vontade de mudança. Mas quando o novo mostra as falhas do antigo, o impulso mais forte é o da eliminação. O novo espeta, machuca de forma brutal o próprio ser das pessoas. Sem entrar em uma visão hegeliana de que se alcança o conhecimento através da alienação, o outro faz com que vejamos nossos próprios defeitos. O outro incomoda, em diversos níveis. Vejam a caça às bruxas, o julgamento de Sócrates e qualquer que seja a nova forma de hostilizar a  novidade.

Deixo as conclusões para vocês. Acrescento apenas: Corcunda de Notre Dame, recomendo a todos: é lindo e rico. Dogville, para aqueles que tem um estômago forte (não é meu caso).

 

Eu Não Voltei Sozinha – Coluna do Mário

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

 

Napeias, Netuno, Ninfas, Orestes e Pílades e Orfeu

 

Mário Amora Ramos

 

Napeias são ninfas dos bosques e prados, nas mitologias grega e romana. Foram citadas por Dom Quixote em sua penitência na Serra Morena [I, XXV].

 

Netuno, na mitologia romana, é o deus do mar. Seu equivalente grego é Poseidon. No discurso sobre as armas e as letras, Dom Quixote se refere ao fundo do mar como “os abismos profundos de Netuno” (los profundos senos de Neptuno) [I, XXXVIII]. Num sanatório de Sevilha, um louco acreditava ser Netuno “o pai e deus das águas” (el padre y el dios de las aguas) [II, I].

 

Ninfas, nas mitologias grega e romana, eram belas jovens que viviam nos bosques. Elas estão nos verbetes: Calipso, Dafne, Dríades, Eco, Musas e Napeias:

 

“Ó vós outras, napeias e dríades, que usais habitar no mais cerrado dos montes, assim os ligeiros e lascivos sátiros de quem sois amadas, posto que em vão, não perturbem jamais o vosso doce sossego; ajudai-me a deplorar a minha desventura, ou pelo menos não vos canseis de ma ouvir!”

 

(¡Oh vosotras, napeas y dríadas, que tenéis por costumbre de habitar en las espesuras de los montes, así los ligeros y lascivos sátiros, de quien sois, aunque en vano, amadas, no perturben jamás vuestro dulce sosiego, que me ayudéis a lamentar mi desventura, o, a lo menos, no os canséis de oílla!) [I, XXV].

 

Orestes e Pílades eram amigos, na mitologia grega. A amizade entre Rocinante e o asno de Sancho é comparada à dos dois amigos:

 

“Afirma-se que o autor chegara a comparar a sua amizade à que tiveram Niso e Euríalo, Pílades e Orestes, e assim não se devia deixar de mostrar, para admiração universal, a firme amizade destes dois pacíficos animais, para confusão dos homens que não sabem guardar amizade uns a outros.”

 

(Digo que dicen que dejó el autor escrito que los había comparado en la amistad a la que tuvieron Niso y Euríalo, y Pílades y Orestes; y si esto es así, se podía echar de ver, para universal admiración, cuán firme debió ser la amistad destos dos pacíficos animales, y para confusión de los hombres, que tan mal saben guardarse amistad los unos a los otros.) [II, XII].

 

Niso e Euríalo são personagens da Eneida de Virgílio e Orestes e Pílades estão em diversas obras clássicas, como nos ensina Martín de Riquer, da Real Academia Espanhola, em seus comentários sobre Dom Quixote.

 

Orfeu, na mitologia grega, era um músico que, com seus poderes mágicos, quase conseguiu regastar sua mulher Eurídice do reino dos mortos. Falhou por desobedecer à ordem de não olhar para trás até que ela estivesse de volta. Na encenação da morte de Altisidora, num trote dos duques, Orfeu é mencionado indiretamente como o “cantor da Trácia” (cantor de Tracia) [II, LXIX].

Nova Coluna

Obviamente, meu trabalho em manter esse blog tem sido falho. Mas desistir nunca!

Achei um novo recurso: achei uns contos que escrevi na faculdade e ou publicá-los (com novos textos e a coluna do Mário). Tenho outros textos que escrevi sobre mitologia e vou ver o que é “publicável”.


 

As Gêmeas no Espelho

(2009)

Era uma vez duas irmãs nascidas ao mesmo tempo de um mesmo útero. Seus nomes eram Alice e Alícia e quem olhasse não saberia se eram duas ou se era apenas uma refletida em um espelho.

Alícia não se importava; ela vivia em um mundo apenas seu, sem ligar para o que os outros achavam. Para muitos era tida como louca; mas quanto mais “louca” ela ficava, menos se importava com a própria loucura. Alícia não se importava em ser diferente.

Alice era o exato contrário; ela vivia em um mundo de aparências. Como um espelho, seu propósito era o olhar do outro. Alice vivia atormentada com sua imagem, mas o que mais a atormentava era comparada àquela irmã tão estranha.

Alice não se conformava em olhar a irmã e ver como que sua própria imagem vivendo exatamente aquilo que ela mais desprezava. Para fugir da imagem distorcida, Alice passava os dias se olhando no espelho. Até que um dia sua própria imagem piscou para ela.

Ecila não entendia aquela menina da qual era a imagem. Para que ficar tanto tempo olhando a si mesma quando aquele mundo no qual ela vivia parecia ter tantas coisas interessantes para se ver? Ecila não se conformava. Até que um dia ela tentou sair do espelho, para conversar com a menina, mas o efeito saiu o contrário e Alice entrou dentro do espelho.

Alice chegou atordoada naquele mundo que ela tanto olhava, mas que aparecia todo invertido. Ela não gostou; nada aparentava a ordem. Gostou menos ainda de Ecila; naquele outro mundo, a sua imagem era como sua gêmea: novamente se via invertida.

No mundo do espelho quem era diferente era Alice. Era um mundo em que parecia ser formado apenas por Alícias. Alice era a louca (e mais louca por se importar com a própria loucura).

Nesse jogo do contrário, do invertido, Alice e Ecila foram se espelhando. No meio da diferença, elas foram ficando cada vez mais e mais semelhantes. Até hoje não se sabe quem realmente saiu do espelho.

Hoje em dia, quando alguém compara as duas gêmeas com um espelho, quem pisca de volta é a imagem refletida, em um jogo que os outros não entendem.

Raptos, Inspirações e Mulheres Poderosas

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

 

Medeia, Medusa, Menelau e as Musas

Mário Amora Ramos

Medeia foi citada no verbete relativo a Jasão. Ela era filha do rei Eetes, da Cólquida. Após conquistar o Velocino de Ouro, uma pele recoberta da lã de um carneiro fabuloso, Jasão fugiu com Medeia e enfrentou várias aventuras na volta para casa. Após dez anos de casado, ele repudiou Medeia para desposar Gláucia, filha de Creonte, rei de Corinto. Medeia, por vingança, matou Gláucia e os próprios filhos que tivera de Jasão.

Ela é citada de passagem no Prólogo do Primeiro Livro, como símbolo de crueldade: “Se tratardes de cruéis, Ovídio porá Medeia à vossa disposição”  [Si tratáredes de (…) crueles, Ovidio os entregará a Medea].

Medusa foi citada no verbete relativo a Dânae. Medusa era a única mortal das três irmãs chamadas Górgonas. Medusa gabou-se de sua beleza para a deusa Atena, que ficou com inveja e transformou-a num ser horrendo, com cobras vivas no lugar de cabelos. Eram tão feias que quem as olhava se transformava em pedra. Perseu, filho de Dânae, matou a Medusa usando um escudo polido como um espelho para olhá-la indiretamente.

Num galanteio, Dom Quixote promete dar à filha de um hospedeiro, se ela os pedisse, “uma madeixa dos cabelos de Medusa, que eram todos cobras, ou os próprios raios do sol encerrados numa redoma” (una guedeja de los cabellos de Medusa, que eran todos culebras, o ya los mesmos rayos del sol encerrados en una redoma) [I, XLIII].

Menelau foi citado no verbete relativo a Helena. Ele era o rei de Esparta, casado com Helena. Ela foi raptada pelo troiano Páris, o que motivou a guerra de Troia, narrada por Homero na Ilíada (cujo nome deriva de Ilios, o equivalente grego de Troia).

Voltando para sua aldeia, Dom Quixote e Sancho Pança encontram numa estalagem modesta um tapeçaria que retrata “o rapto de Helena, quando o atrevido hóspede a levou de Menelau” (el robo de Elena, cuando el atrevido huésped se la llevó a Menalao) [II, LXXI].

Minos e Radamanto foram citados no verbete relativo aos Campos Elísios, a morada das pessoas virtuosas após a morte, se os três juízes dos infernos (Eaco, Minos e Radamanto) decidissem que tinham tido uma vida digna. Minos e Radamanto são personagens de um trote pregados pelos duques em Dom Quixote e Sancho Pança [II, LXIX].

Musas, na mitologia grega, são nove ninfas protetoras das artes: Clio (história), Euterpe (música), Tália (comédia e poesia pastoral), Melpômene (tragédia), Terpsícore (dança) Érato (elegia), Polínia (poesia lírica), Urânia (astronomia) e Calíope (eloquência).

Np Prólogo do Primeiro Livro, Cervantes lamenta o desconforto do cárcere e a falta de condições nas quais “as musas mais estéreis se mostrem fecundas” (las musas más estériles se muestren fecundas). No Segundo Livro, Dom Quixote cita o deus romano Febo a as musas ao elogiar os versos de Dom Lourenço [II, XVIII].

O Adivinho Cego e os Dois Lados do Rock’n’Roll

Sabe que o menino que passar debaixo do arco-íris vira moça, vira

A menina que cruzar de volta o arco-íris rapidinho vira volta a ser rapaz

A menina que passou no arco era o

Menino que passou no arco

E vai virar menina

Imagina

“Imagina”, Chico Buarque

Tirésias, talvez o maior sábio de toda mitologia grega, aparece como um velho cego. Ele aconselha heróis tais como Odisseus e Édipo. Seu mito conta que sua sabedoria vem do fato dele ter passado sete anos como mulher e depois voltado a ser homem. Devido a isso, ele foi chamado a decidir uma pequena “guerra dos sexos” entre Zeus e Hera, nada menos do que o primeiro casal do Olimpo. Sabendo que sua resposta iria enfurecer um dos dois; Tirésias resolveu dizer sua opinião verdadeira e concordou com Zeus. Hera, despeitada, cegou Tirésias. Zeus, compadecido, lhe deu o dom da previsão. Um mito que nos conta que a sabedoria vem de “ver” os dois lados da moeda.

Pulamos no tempo para uma mulher transexual nascida no lado Leste de uma Berlim dividida. Hedwig Schmidt faz suas apresentações musicais onde consegue nos Estados Unidos e conta sua história desde o nascimento como Hansel até o incidente com certo rock star conhecido como Tommy Gnosis.

“Você me conhece?

Eu sou o novo Muro de Berlim

Venha e tente me derrubar”

“Hedwig: Rock, Amor e Traição”, John Cameron Mitchell

Hedwig começa sua trajetória como o menino Hansel, criado por uma mãe que tem o comunismo como religião na Alemanha Dividida. Depois de fracassar na vida acadêmica, Hansel conhece o sargento americano Luther  Robinson que promete casamento e passagem para os Estados Unidos. Hansel precisa deixar uma parte sua para trás para passar na inspeção do Leste Europeu e poder se tornar a senhora Robinson. Ganhando o passaporte e o nome de sua mãe, Hansel se transforma em Hedwig. Porém, um centímetro enfurecido fica de vestígio da operação mal sucedida. Hedwig se sente incompleta e começa sua busca por alguém que a complete.

Já na América e abandonada por seu marido, Hedwig vive de pequenos bicos e de um flerte com a carreira musical. Em uma dessas, ela conhece o jovem Tommy. Os dois se apaixonam e vivem um romance que termina porque Tommy não consegue lidar com o lado da frente de Hedwig. Quando os dois partem por caminhos separados, Tommy leva o nome que Hedwig lhe deu (Gnosis, palavra grega para o conhecimento) e as músicas que os dois compuseram juntos. A Hedwig, resta percorrer o país se apresentando nas mesmas cidades que Tommy (em lugares bem menos glamourosos); tentando dizer ao mundo a verdade sobre Tommy Gnosis.

Tudo se passa embalado pelo sucesso “A Origem do Amor”, que bebe na fonte de Platão e usa um dos discursos do “Banquete” (misturando outras mitologias) para tentar explicar essa coisa confusa que é o amor.


Falando de “qualquer maneira de amor vale a pena”; eu escrevi um conto para um concurso e ele agora está disponível no site da Amazon.


Tradução da música no Leia Mais. Continuar lendo

Sob Influência de Marte

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

 

Jasão, Júpiter e Marte

Mário Amora Ramos

Jasão era da Tessália, onde também nasceu o guerreiro Aquiles, da guerra de Troia. Ele liderou os argonautas (tripulantes do navio Argo) na busca do Velocino de Ouro, uma pele recoberta da lã de um carneiro fabuloso.

Com o Velocino nas mãos, Jasão foge com Medeia, filha do rei Eetes da Cólquida, e enfrenta várias aventuras na volta para casa. Após dez anos de casado, repudiou Medeia para desposar Gláucia, filha de Creonte, rei de Corinto. Medeia, por vingança, matou Gláucia e os próprios filhos que tivera de Jasão.

No epitáfio de Dom Quixote, num soneto atribuído por Cervantes (jocosamente) ao Monicongo, um acadêmico de Argamasilla, Dom Quixote é descrito como:

“O treloucado que adornou a Mancha

de mais despojos que Jasão de Creta”

(El calvatrueno que adornó a la Mancha

de más despojos que Jasón de Creta) [I, LII]

Há aqui um engano (possivelmente cometido para preservar a rima do soneto) uma vez que Jasão é da Tessália e não de Creta.

Júpiter, na mitologia romana, é o deus supremo, senhor dos raios e das chuvas. Um louco, num sanatório de Sevilha, acreditava ser Júpiter “cuja majestade eu represento” (cuya majestad yo represento) [II, I]. Curiosamente, os loucos não costumam representar divindades de baixo escalão.

Marte é o deus da guerra, na mitologia romana. Ele é mencionado num soneto em louvor a Rocinante, no verso: “que com sangrentas plantas pisa Marte” (que con sangrientas plantas huella Marte) [I, LII].

Marte é mencionado neste comentário de Dom Quixote, para tranquilizar Sancho:

“as quais coisas todas juntas, e cada uma só por si, são bastantes para infundir medo, temor e espanto ao peito do mesmo Marte, quanto mais a quem não está acostumado a semelhantes acontecimentos e aventuras”

(las cuales cosas, todas juntas y cada una por sí, son bastantes a infundir miedo, temor y espanto en el pecho del mesmo Marte, cuanto más en aquel que no está acostumbrado a semejantes acontecimientos y aventuras) [I, XX].

Em conversa com a sobrinha, Dom Quixote expõe suas razões para sair em busca de aventuras: “nasci, pela inclinação que tenho para as armas, sob a influência do planeta Marte” (nací, según me inclino a las armas, debajo de la influencia del planeta Marte) [II, VI].

O Início, o Fim e o Meio

Certo mito hindu diz que o mundo está apoiado em elefantes que, por sua vez, estão apoiados em uma enorme tartaruga cósmica. Esse mito tornou-se base para argumentos da física e da filosofia, visto que a primeira pergunta que se faz é: Em que está a tartaruga? “Em outra tartaruga, oras”; resposta muito simples na cabeça do homem mitológico. Isto até gerou uma expressão em inglês: it’s turtles all the way down [são tartarugas até o final do caminho]. Problema resolvido.

Para os gregos, a questão de limites era bastante diferente da nossa. Juntar infinitas tartarugas cósmicas para sustentar o mundo parecia para eles uma maneira bastante lógica de resolver o problema. Para eles, o grande problema era algo surgir do nada. “Como assim uma grande explosão gerou o universo? Mas de onde veio a grande explosão?”; te perguntaria seu amigo grego. “Do nada”; nossa resposta plausível e de acordo com a lógica contemporânea ocidental. Para ele, você é tão louco dizendo isso quanto você o acha com a história de elefantes e tartarugas. O nada é vazio e o vazio, para os gregos, é incapaz de gerar alguma coisa. A ideia de que o universo sempre existiu (tendo em conta que não pode vir do nada ou se transformar no nada depois) é a maneira de pensar da era clássica.

Mas o homem cristão vive carregando suas culpas até o inescapável dia do Juízo Final. O mundo vai acabar na grande batalha entre o Bem e o Mal. Finalmente, os bons serão recompensados e os maus punidos (conceito estranho à Grécia também, mas isso é assunto para uma outra hora). Mas será assim mesmo? É dessa premissa que partem os autores Neil Gaiman e Terry Pratchett para escrever “Belas Maldições” [Good Omens, no original]. Com direito aos Quatro Cavaleiros do Apocalipse e  tudo o mais.

No livro, contado no melhor humor britânico dos dois autores, vemos o encontro da dupla mais improvável possível: o anjo que guardou o Jardim do Éden e a serpente que tentou Eva (no caso um demônio do sexo masculino). Esses dois continuaram vivendo na Terra, se acostumaram um com o outro e gostam bastante da vida que levam. Alguns milhares de anos depois, a dupla se depara com a frustração de seus planos ao receber a mensagem que o Anticristo iria nascer e que o Apocalipse aconteceriam um pouco depois que ele completasse onze anos. A dupla, ambos insatisfeitos com seus respectivos superiores e suas decisões de acabar com o mundo, resolve que cabe aos dois influenciar o Anticristo para que ele tenha uma nova ideia sobre o Apocalipse.

Tudo combinado, os dois passam a se responsabilizar pela educação do garoto; cada um a seu modo. Apenas para se verem frustrados no décimo primeiro aniversário do menino quando souberam que, devido a uma troca na maternidade, eles criaram o Lorde das Trevas errado. Tudo está nas mãos do caráter da criança. Ele foi criado como um humano; será que sua essência como a quintessência da maldade vai prevalecer? Será que ele aprendeu alguma bondade?

Temos um grande conflito entre Bem e Mal; o Mocinho e o Bandido. Porém, temos um personagem que não sabemos em que lado desse quadro ele se encontra. Teria o menino Livre Arbítrio, por ter nascido humano? Ou seu destino inefável é cumprir a profecia do Anticristo e do Apocalipse? Mas por que diabos o mundo tem que acabar?

Segundo a teoria cristã; sim. Bem e mal são coisas bastante separadas nas figuras de Deus e do Diabo. Há que existir a Batalha Final em que o Bem triunfará. Mas se voarmos para o Olimpo e o panteão grego; todos os deuses são duais tendo seu lado positivo e negativo. Plutão, o deus da morte, é também o deus da vida pois ele é responsável pelo submundo de onde brotam as sementes. Como você pode conhecer alguma coisa sem conhecer o seu contrário? A palavra chave para os gregos é “medida”: é necessário saber o que é proibido ou permitido a você. Tudo na sua hora e no seu lugar, num grande equilíbrio cósmico.


Curiosidade: O autor Terry Pratchett tem uma famosa série de livros chamada Discworld que se passa em um mundo achatado e sustentado nas costas de quatro elefantes que se equilibram em uma tartaruga.

Madrasta Má

Referências Mitológicas no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

 

Hera e Hércules

Mário Amora Ramos

Hera é a deusa das bodas e da maternidade, equivalente a Juno na mitologia romana. Irmã e esposa de Zeus, perseguia as amantes e os filhos bastardos dele. Dentre estes, destaca-se Hércules, filho da mortal Alcmena. Enquanto o marido dela estava na guerra, Zeus tomou a sua forma, tendo com Alcmena seu filho Hércules. O Cavaleiro do Bosque compara sua amada Cassildeia a Hera: “Esta tal Casildeia, pois, que vou contando, pagou meus bons pensamentos e comedidos desejos com fazer-me ocupar, como sua madrasta a Hércules, em muitos e diversos perigos.” (Esta tal Casildea, pues, que voy contando, pagó mis buenos pensamientos y comedidos deseos con hacerme ocupar, como su madrina a Hércules, en muchos y diversos peligros.) [II, XIV]

Hércules, apresentado no verbete acima, é dos heróis mais conhecidos da mitologia grega. Quando Hércules procurou o oráculo de Delfos, este disse-lhe que deveria servir durante doze anos a seu primo Euristeu, rei de Argos.

Os doze trabalhos realizados por Hércules para o rei Euristeu foram: Matar o leão de Nemeia, cuja pele passou a usar como armadura; matar a Hidra, uma serpente com muitas cabeças; capturar um javali e uma corça nas montanhas da Arcádia; limpar, em um dia, os estábulos do rei Augias; enfrentar o touro selvagem do rei Minos, de Creta; capturar os cavalos do rei Diomedes da Trácia; obter o cinturão de Hipólita, rainha das Amazonas; buscar o gado do monstro Gerião; levar as maçãs de ouro das irmãs Hespérides para Euristeu e, finalmente, subjugar Cérbero, que guardava o Hades.

As três últimas façanhas simbolizam a conquista da imortalidade: Gerião e Cérbero representam a morte e as maçãs são o fruto da Árvore da Vida.

Hércules foi mencionado no verbete Anteu, um gigante invencível, desde que permanesse em contato com sua mãe, a Terra. Hércules inteligentemente o ergueu e “asfixiou Anteu, o filho da Terra, entre os braços” (ahogó a Anteo, el hijo de la Tierra, entre los brazos) [I, I].

Dom Quixote, ao exemplificar que nem os grandes heróis estão livres da calúnia, disse: “De Hércules, o de muitos trabalhos, se conta que foi lascivo e mole” (De Hércules, el de los muchos trabajos, se cuenta que fue lascivo y muelle) [II, II].

Hércules foi mencionado também no verbete Colunas de Hércules, que é o nome dado aos montes que delimitam o estreito de Gibraltar, situados, respectivamente, na Espanha e no Marrocos. Mestre Pedro (na verdade, Ginés de Pasamonte, um espertalhão que enganava os incrédulos com um macaco adivinho) abraçou Dom Quixote pelas pernas e assim o saudou: “_ Abraço estas pernas como se abraçasse as duas colunas de Hércules, ó ressuscitador insigne da já olvidada cavalaria andante!” (_ Estas piernas abrazo, bien así como si abrazara las dos colunas de Hércules, ¡oh resucitador insigne de la ya puesta en olvido andante caballería!) [II, XXV].

Deve-se a Hércules o adjetivo “hercúleo”, que se aplica a façanhas que requerem coragem e vigor físico.

Perder-se

“Conhece-te a ti mesmo” era o lema do Oráculo de Delfos. Mas na Grécia Antiga o “conhecer-te” era se conhecer em relação a sociedade em que se vive. Era preciso saber seu lugar para o bom funcionamento de todos. Os limites eram-lhe dados e cabia ao indivíduos não ultrapassá-los.

Depois, o indivíduo vai se internalizando e os limites se tornam menos conhecidos. Todos querem saber seus próprios limites e não há nenhum oráculo mágico com as respostas. Os limites passam a ser testados e só são descobertos quando ultrapassados. Surge o “romance de formação”, termo alemão para o tipo de livro que narra a história da criação e educação de um herói.

Pode-se dizer que os “romances de formação” narram todos os eventos importantes para moldar a índole de um herói ou anti-herói. Geralmente o herói precisa sair de sua zona de conforto e voltar para o seu local de origem transformado. O que antes ocorria em grandes aventuras épicas (que mostravam que o mundo é muito maior do que seu jardim) agora ocorre em proporções bem mais cotidianas. O que nunca muda é a participação do outro.

Nada melhor para demarcar o que está “dentro” do que uma coisa completamente alien. Assim chegamos a Margo Roth Spiegelman, vizinha de Q no romance “Cidades de Papel” (de John Green). Os “romances de formação” contemporâneos muitas vezes se passam nas escolas de Ensino Médio. Época de fim de um ciclo, escolha profissional e mudanças; também é época de transformações pessoais e formação de caráter.

Q é obrigado a sair de sua zona de conforto quando a vizinha (e objeto de seu desejo) o chama para uma noite de travessuras por toda a cidade de Orlando. O resto do romance gira em torno de Q descobrir o quanto de Margo era parte dela e o quanto era o que ele projetava. Saber traçar os limites do que é o outro e do que apenas somos nós espelhados é uma forma de traçar nossos próprios limites. Projeções e frustrações mostram como essas barreiras são frágeis e quanto do nosso ego rege a nossa vida.

Olhar o outro como outro exige um conhecimento de si dos mais aguçados. Perceber influências e essências é um trabalho para vida toda. Levando-se em conta que o outro sempre tem algo a ensinar. Traçar os limites passa a ser uma questão de escolha tanto quanto de aptidão. Arrisco dizer que o “romance de formação” da idade contemporânea é tornar-se a pessoa que queremos ser.