Mas é Carnaval

Um texto meu falando “academiquês” mas que vem a calhar com a época do ano. Boa folia dionisíaca para todos e que voltemos ao apolíneo na Quarta-Feira de Cinzas.


A Democracia Trágica de Atenas:

 

“O negócio é a peça – que eu usarei

Pra explodir a consciência do rei.”

(William Shakespeare – Hamlet)

 

 

            A tragédia grega surge em um contexto muito específico da História da Grécia Antiga. Ela aparece no momento de consolidação da democracia ateniense; momento de quebra com a tradição mítica no qual as explicações humanas assumem um destaque em relação às explicações divinas. Em busca de diminuir a importância da aristocracia, uma verdade revelada a poucos, um herói semelhante aos deuses, um governante escolhido pelo deus, não têm mais espaço no ambiente do voto popular, dos soldados hoplitas e do interesse da cidade acima dos interesses individuais.

A tragédia nasce do mito. Não se tem precisão (nem consenso) quanto ao nascimento exato da tragédia; porém é certo que ela surge de ritos e está associada ao deus Dioniso. Dioniso é o deus da alteridade, do êxtase, da quebra dos limites. O lugar dele na pólis é o da capacidade do homem ser outro, sair de sua vida no métron, na razão, e conhecer a áte (cegueira da razão). Através da loucura dionisíaca, o cidadão podia extravasar todos os sentimentos de “excesso” e continuar a viver o cotidiano dentro da medida. Esta tarefa também aparece na tragédia quando ocorre a kátharsis do público e esses sentimentos são sublimados.

 

O elemento básico da religião dionisíaca é a transformação. O homem, arrebatado pelo deus, transportado para o seu reino por meio do êxtase, é diferente do que é no mundo cotidiano. Mas a transformação é também aquilo de onde, e somente daí, pode surgir a arte dramática, que é algo distinto de uma mera imitação desenvolvida através de um instinto lúdico, e é também algo distinto de uma representação mágico-religiosa de demônios, pois a arte dramática é uma replasmação do vivo. (LESKY, apud FERNANDES, sem ano, 5).

 

 

Neste novo cenário democrático da pólis, a tragédia marca o conflito entre os valores do herói mítico e do novo herói trágico. O herói mítico é aquele que está acima dos outros mortais, os limites deles vão mais longe do que os dos outros. Ele vem de alguma linhagem real: é descendente de algum deus; disso provém o seu poder. Os deuses estão sempre por trás das ações desses heróis, garantindo sempre que sua glória seja maior que a de outros heróis e que eles sejam lembrados pelas gerações futuras. Qualquer hýbris (excesso) desses heróis é justificada como tendo sido a vontade de alguma divindade.

 

As lendas dos heróis, com efeito, ligam-se a linhagens reais, a génē nobres que, no plano de valores, de práticas sociais, de formas de religiosidade, de comportamentos humanos, representam para a cidade justamente aquilo que ela teve que condenar e rejeitar, contra o que teve que lutar para estabelecer-se mas também aquilo a partir do que se constituiu e com que permanece profundamente solidária. (VERNANT 1988, 14).

 

 

Toda a mitologia dos heróis ainda é muito presente na pólis, porém, foi contra esses valores que confirmavam a aristocracia que a democracia teve que combater para se estabelecer.